Por Nilson Montoril
Há dois anos, falecia na cidade de Macapá, a carnavalesca Alice Guedes de Azevedo, a eterna rainha moma do carnaval amapaense. Partiu quando faltavam apenas quinze minutos para as 24 horas do dia 2 de abril de 2005. As fortes emoções decorrentes de momentos especiais sempre tiravam do ritmo normal o sacolejo de seu coração alvi-azul, as cores vitoriosas do Paysandu Sport Clube. Nascida em Belém, no dia 8 de março de 1934, Alice Azevedo passou a infância e a juventude na casa dos pais, à Rua Veiga Cabral, número 114, na cidade velha. Seu primeiro emprego foi na Sorveteria “Flor de Lis”, na esquina da Rua Padre Eutiquio com a Avenida Almirante Tamandaré. Em meados do ano de 1959, passou a trabalhar com o senhor Orlando Ventura em dois estabelecimentos comerciais que ele possuía na cidade de Belém: o Hotel Coelho (que depois recebeu o nome de Vanja Hotel) e o Hotel Regina. Nesta ocasião foi designada para vir a Macapá, a serviço, porque o senhor Orlando Ventura havia arrendado o Macapá Hotel. Alice era chefe de cozinha e uma espécie de subgerente. Deveria passar três meses, mas permaneceu para sempre. Não vamos falar da Alice comerciante, desportista ou carnavalesca e sim da brava cidadã que tinha uma vontade imensa de ser escritora. O destino não lhe favoreceu nesta pretensão. Os estudos tiveram que ser interrompido porque o pai retirou-se do lar, deixando dona Felícia Silva Azevedo, sua genitora, com a missão de desdobra-se para sustentar a família. Alice precisou trabalhar para ajudar sua mãe e por isso não avançou nos estudos.
O valor do consistente curso primário que a Alice freqüentou foi fundamental na vida da rainha moma. Escrevia bem, conhecia os meandros da gramática e as quatro operações fundamentais da matemática. Ela nunca temeu a morte. Sabia que todos os seres vivos fatalmente acabarão em seus braços. Guardo, com extremo zelo, algumas crônicas que a Alice escreveu e que estão sob meu cuidado graças à benevolência de sua filha Mary Lúcia de Azevedo Martins, as quais transcrevo neste artigo. A primeira destas crônicas tem o título de “A Morte”:
"A morte, ninguém, ou quase ninguém gosta de escrever, de falar, ou mesmo de pensar sobre ela.
Sempre que se escreve é aquela caveira, com uma foice, muito feia, que causa muito horror.
Quando sentimos um arrepio, logo cruzamos os dedos, batemos na madeira dizendo “cruz credo, a morte passou por aqui, Deus me livre!”.
Não gostamos de lembrar o nosso encontro com o dia da grande viagem.
A morte é um anjo lindo, muito iluminado, e tão angelical, como todos os Arcanjos.
E de tantas virtudes, e de tal grandeza, que mereceu de Deus a confiança de uma grande missão, a mais dura, a mais triste e dolorida.
Em minha imaginação, esse lindo anjo, ao receber de Deus a ordem para cumprir sua espinhosa tarefa humildemente perguntou:
Divino Pai, por que eu? Por que esse tão pesado fardo? Só irei levar tristeza, lágrimas, dor, destruição, fazer órfãos, viúvas, só irei espalhar medo, horror a todos os viventes, todos fugirão ao escutarem o meu nome, nunca serei esperada e nunca receberei uma só prece.
DEUS, o senhor de tudo e de todos ordenou: ”Vai e cumpre tua missão, que é a mais bela de todas. Serás sempre o mais temido, o mais respeitado de todos!!! Nunca terás culpa, porque haverá sempre uma desculpa.”
Assim, o lindo anjo do Senhor continua nos levando pela mão, quando chegar o nosso grande dia, a nossa hora, conforme está escrito no grande livro desde que somos mandados à cumprir a nossa missão no planeta em que estamos situados.
Bendito sejas! Divino anjo do Senhor.
Bendito seja o teu nome: Morte.”
Sofrendo de diabetes, com o peso acima do normal e convivendo com um câncer, Alice Azevedo tinha consciência de que seu desenlace poderia ocorrer a qualquer momento. O dadivoso coração já havia anunciado que sua saúde precisava de cuidados especiais. No dia 29 de setembro de 1996, Alice viveu um dos seus internamentos no Hospital Geral de Macapá. Naquele dia ela registrou a forte emoção que sentia da seguinte forma:
“Na janela do velho Hospital Geral, onde encontro-me internada fiquei olhando para a Av. FAB.
Embarquei no mundo das ilusões, vi a velha companheira de tantos carnavais, vestida de alegria, de luzes e fantasias, brilhos e cores a mil. Vi malabaristas de samba, mulatas com seus gingados fazendo a galera delirar. Escutei até os sons das baterias, acompanhando intérpretes nos sambas-enredo, bem eloqüentes. Era uma festa só.
No meu delírio, era uma noite de carnaval, uma noite de ilusão.
De repente, despertei para a triste realidade: Eu, triste, sozinha, olhando para a passarela das emoções do samba. Mais triste, eu, calada, sem brilho, agitada, apenas pelo vai e vem do cotidiano. Ela mais triste do que eu porque nunca mais terá uma noite de carnaval. E eu? Sim, e eu sozinha? Eu sempre estive rodeada de amigos? Esqueci que meus amigos são todos alegres e das horas alegres do meu reino de ilusão.
Fico aqui na janela do velho e majestoso Hospital Geral, cantando baixinho, só para mim, aquela musiquinha da Divina Elizeth Cardoso: MÊ DÊ AS FLORES EM VIDA, O CARINHO E A MÃO AMIGA”.
Num outro período de internação, Alice Gorda assim escreveu:
“És a candeia que ilumina meus últimos dias de solidão. Chegastes quando eu não tinha mais forças, nem capacidade de lutar com a morte.
Não sei por quê!
Nem quando chegastes!
Nem de onde viestes! Só sei que tua divina luz invadiu minha alma.
Fez surgir em mim uma energia tão grande, que me fez crer na vida, que podia lutar contra a sorte, e a morte fez surgir em mim a própria razão de viver;
Candeia! Luz divina da minha vida, fonte de luz, mandada do infinito pelo pai dos sofredores;
Quero morrer iluminada pela luz nos últimos instantes da minha vida. Quero dizer com as últimas forças que me forem permitidas.
BENDITA LUZ, FOSTE O BÁLSAMO CONSOLADOR DE QUEM TANTO SOFREU”.
Sempre que estava doente, sem poder sair de casa, a Alice Gorda clamava pela presença dos amigos. Em certa ocasião ela elaborou a crônica que ora transcrevo:
O QUE É SER AMIGA OU AMIGO.
“Eu, na minha pobreza de espírito como ser humano, fico sempre me perguntando: Será que sei que sou boa amiga? Às vezes apelo para o infinito, na esperança de que algum irmão da espiritualidade, me faça refletir melhor. Rogo a Deus que me ilumine como devo agir.
Eu sei que somos todos irmãos, que devemos nos respeitar, devemos nos amar, devemos nos ajudar. Foi o que nos ensinou o Mestre dos Mestres, nosso amado JESUS.
Eu acho que o amigo ou a amiga e o desconhecido, que por vontade de Pai Eterno foi colocado ao nosso lado, devem conviver, respeitar o próximo e não ofendê-lo, nem em pensamento ou palavras. Devem se tratar com carinho, com atenção. Estar lado a alado nos momentos difíceis, dividir as horas de tristeza, levando sempre a sua palavra amiga e tratar com respeito. Ser fiel. Defender um ao outro, na presença e na ausência. Não criticar seus erros, suas fraquezas. Procurar, sem ofender, oferecer ajuda para que ele ou ela, por si mesmo sinta necessidade de se corrigir.
Não devemos permitir que ninguém faça comentários, ofensas ou críticas destrutivas a um amigo.
Será que sou tudo isso? Não!!!
Sou uma pecadora, tenho minhas falhas e momentos de fraquezas. Como todo ser humano, luto e procuro me ajudar, para que a minha missão na terra seja cumprida e venha a ter saldo positivo para a vida futura. O que me causa essa parafernália toda foi ter visto criaturas amigas falar: - Fulano ou fulana é minha grande amiga, mas tem tal defeito, e passa a criticar na frente dos outros. Outra: um amigo ou uma amiga vem contar um segredo muito particular e diz: - eu só conto pra ti, que és meu amigo e em quem eu muito confio. Mas, logo ao virar as costas, passa o segredo que lhe foi confiado. O que sei é que, se alguma coisa me faz feliz e eleva a minha alma, é ter amigos. Uma coisa existe que me faz mais feliz ainda: É ser amiga.”
As crônicas elaboradas pela saudosa amiga Alice Gorda estão transcritas do jeito que ela escreveu. Alice Guedes de Azevedo, a risonha Alice Gorda, desencarnou do verbo no dia 2 de abril de 2005, há seis anos. O artigo que agora publico no meu blog foi escrito em 2007 e publicado no jornal Diário do Amapá.
Um comentário:
Nobre Nilson Montoril, só o fato de lermos a crônica acima sobre a MORTE é de valorizarmos a coragem e a simplicidade de D.Alice é vermos que ela teve a singeleza de enaltecer uma fase de nossas vidas que é a morte e que nós seres mortais não queremos aceitar como uma das fases da vida; tinha eu meus 12 anos e gostava de ver a deslumbrante D.Alice na Cãndido Mendes, puxando toda aquela multidão, ela é história no Amapá. Não páre de colocar as crônicas de nossa querida d.Alice. Heraldo Amoras-Belém-Pará
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