Por Nilson Montoril
O frances Celestine, com suas tatuagens feitas quando esteve preso na Guiana Francesa. |
Celestine, um cidadão francês traído pela mulher e pelo destino, viveu vários anos livre nas terras banhadas pelo Rio Oiapoque ao lado de uma nativa que tomou por esposa e que lhe deu alguns filhos. Nasceu em 1914, na cidade de Lille, no norte da França, fronteira com a Bélgica e com o Canal da Mancha. Por ocasião da II Guerra Mundial, a despeito de ser casado, Celestine foi um dos primeiros voluntários a se apresentar aos comandantes das tropas francesas envolvidas no conflito. Esteve em vários frentes de batalhas, porém, nunca deixou de mandar o necessário para o sustento da família que, obrigada pela guerra foi residir em Paris, hospedando-se na casa de parentes. Seu sonho era ver a guerra acabar e poder retornar para casa. Ao final do confronto, Celestine estava entre os soldados franceses que marcharam sob o Arco do Triunfo, em Paris, comemorando a vitória dos aliados contra os países do Eixo. Após a desmobilização das tropas foi procurar sua família, mas não a encontrou junto a seus parentes. Os familiares demonstravam muito nervosismo porque Celestine era homem de temperamento forte e poderia cometer uma loucura se ficasse sabendo de algo comprometedor a respeito do comportamento da esposa. Disseram-lhe apenas que ela só aparecia para receber o dinheiro que ele mandava. Celestine saiu a sua procura, localizando-a numa casa de cômodos nos arrabaldes de Noisy lê Séc, longe do centro de Paris. Ao entrar no quarto encontrou-a nos braços de um homem. Dominado pelo ódio, Celestine investiu contra os dois, matando-os a golpes de punhal. Poderia ter fugido para a Bélgica, mas preferiu apresentar-se as autoridades policiais. Tinha esperanças de que devido às circunstancias do ocorrido, o caso fosse melhor compreendido e a pena mais suave. Ledo engano. Celestine foi condenado “au bagne” (galés perpétuas). Inicialmente ficou recluso em Paris, na prisão de La Santé (a saúde), sendo transferido posteriormente para Maison Carrée (Casa quadrada), na Argélia, donde foi embarcado num “convoi” (comboio) para a Guiana Francesa. Entre os transportados Celestine encontrou Pierre le Grand, um sujeito de estatura avantajada que impunha respeito aos demais, do qual se tornou amigo. Ao desembarcarem em Cayanne, Celestine e Pierre permaneceram no mesmo grupo que passou a cumprir pena na “Route Zéro”, uma estrada sem destino específico que estava sendo aberta na região de Saint Luarent du Marroni (São Lourenço de Marroni). A estrada servia para manter ocupados os condenados e não havia pressa em concluí-la. Não foram poucas as vezes que Celestine e outros prisioneiros tiveram de enfrentar jornadas exaustivas no terrível campo de Kourou le Roche (coser a rocha). Aí os presos cortavam enormes troncos de árvores sem nenhuma utilidade. Recebiam minguada ração e dormiam acorrentados. Em Kourou, Celestine, Pierre le Grand e mais quatro companheiros planejaram a primeira tentativa de fuga. A maneira como ela aconteceu foi narrada pelo próprio Celestine ao Tenente Alfredo Gama, oficial do Exército Brasileiro que desde 1940 ia com regularidade ao Oiapoque e o entrevistou. “Todos tínhamos economias guardadas com segurança, cada um no seu Plan (tubo de dez centímetros de comprimento, mais ou menos, feito de alumínio, prata, ouro, segundo as posses, em que os forçados guardavam seus valores, dinheiro, etc., introduzidos no anus e alojados no intestino grosso. Os seis compraram uma canoa de uns nativos e empreenderam a fuga numa noite escura seguindo o curso do rio Marroni no sentido do Oceano Atlântico. Seguiram navegando sempre com terra à vista rumo ao norte. Entre os fugitivos estava o Michel, que tinha sido marinheiro e aconselhou aos demais que seria melhor rumar para terra e seguir a pé pela praia no rumo da Venezuela. A canoa era frágil e as águas do oceano estavam encrespadas demais e infestadas de tubarões. Mal a canoa se aproximou da terra uma onda lançou-a contra as pedras, destruindo-a. A jornada a pé favoreceu a alimentação do grupo, haja vista que havia muitos mariscos e pequenos peixes entre os recifes . Somente no quarto dia de caminhada encontraram uma aldeia de pescadores e souberam que estavam na Guiana Holandesa, atual Suriname.
Ruinas da terrível prisão de São José, na Guiana Francesa. Celestine ficou preso em uma das celas que a integravam. |
Os seis fugitivos passaram dois dias entre os nativos, recebendo muita atenção e respeito. Utilizando outra canoa, que não estava preparada para enfrentar a força do mar, aventuraram-se sobre ele tendo a Venezuela como ponto de chegada. Eles sabiam que naquele país estariam livres dos tormentos das prisões francesas. Pouco navegaram, porque a canoa fazia muita água. Entraram no rio Suriname, a fim de calafetá-la ou adquirir outra bem sólida. Á noite chegaram a Paramaribo e sorrateiramente se dirigiram a uma casa que lhes parecia ser uma hospedaria. O creôlo que os recepcionou informou-lhes que seria humanamente impossível chegarem à Venezuela e sugeriu que ficassem por mais tempo na cidade para negociarem uma boa canoa. O creôlo não perdeu tempo em denunciá-los à polícia. Presos, foram recambiados para a Guyana Francesa e metidos na prisão da ilha de Saint Joseph (São José), onde cumpriram seis meses de reclusão “au cachot” (cubículo subterrâneo para insubordinados), a pão e água. Cumprida a penalidade, seis criaturas esqueléticas foram retiradas dos cubículos e recambiadas para Saint-Laurant du Maroni e entregues aos tormentos de construir a “Route Zéro”. Do grupo de seis fugitivos apenas Celestine e Pierre, le Grand conseguiram sobreviver aos trabalhos forçados. Pouco tempo depois os dois amigos foram separados. Embrutecido pelo sofrimento, Celestine isolou-se dos demais presos, cumprindo resignadamente sua desdita. Isso fez os gendarmes e diretores das prisões o considerassem um preso disciplinado. Acabou sendo transferido para Cayenne após dez anos de peregrinações por diversos lugares medonhos. Seu novo destino foi a Usina Elétrica de Cayenne, onde reencontro o velho amigo Pierre. Novamente os dois passaram a planejar nova fuga, desta feita para o Brasil. Trabalhavam na Usina: Celestine, Pierre, Louis le Corsé (Luis, o consistente) e le vieux Gilôt (o velho Gilôt). Este disse que ajudaria seus companheiros, mas a idade não permitiria que ele se aventurasse às jornadas estafantes. Tidos como comportados, os presos cumpriam com exatidão suas jornadas. Um dia souberam que um veleiro deixaria Cayenne com destino a Saint George (São Jorge) transportando víveres para os mineiros e exploradores franceses que andavam a procura de ouro no rio Oiapoque. Logo ficaram cientes de todos os detalhes sobre o veleiro: tamanho, tripulação, dia e hora exata da saída e a rota a ser seguida. Souberam também que o comandante era um aventureiro capaz de qualquer patifaria por argent (dinheiro). Isso, Celestine, Pierre e Louis tinham bastante em seus Pans. Na tripulação do veleiro havia seis “liberés” (forçados com relativa liberdade, obrigados a permanecer na Guyana para cumprir integralmente a pena recebida). Enquanto o comandante almoçava os três forçados embarcaram no veleiro com a ajuda dos “liberés”. Em alto mar a tripulação foi rendida e o comandante obrigado a seguir as orientações de Louis. Depois de dois dias de viagem os fugitivos pediram para desembarcar num ponto deserto do litoral brasileiro, onde construíram um carbé (choupana).
Paisagem do Rio Oipoque logo após a sua foz. É um trecho praticamente intocável nos dias atuais. Vencendo a grande distância Celestine conseguiu avançar para regiões além da atual cidade de Oiapoque. |
Todos estavam bem armados e possuíam boa quantidade de alimentos comprados no veleiro. Livre, Louis le Corsé quis impor autoridade absoluta, com o que Pierre não concordou. Os dois não tardaram a entrar em litígio. Armado de um fuzil, Louis desferiu um tiro no peito de Pierre que, mesmo ferido de morte ainda teve forças suficientes para usar um sabre tomado de um gendarme e trucidar o antagonista. Celestine, acometido de malária a tudo presenciou. Decorridos dois dias, um pouco melhor da febre, Celestine deu sepultura a seus companheiros de fuga com todos os seus pertences. Não teve coragem de extrair os Plan dos anus dos comparsas mortos. Celestine queimou o carbé e embrenhou-se na mata seguindo o curso do rio Oiapoque no sentido da nascente. Tinha consciência de que estava perto de obter a felicidade almejada. Foi estabelecer-se numa ilhota pertencente ao Brasil, próximo à boca do rio Maropi, no alto rio Oiapoque. Casou com uma índia brasileira, de cuja união nasceram cinco caboclinhos dos olhos azuis. Celestine nunca foi importunado até morrer. Militares brasileiros que conheceram os filhos Celestine afirmavam que as crianças tinham pele clara, cabelos louros e olhos azuis. Por causa deles, dizia-se que no alto rio Oiapoque existia uma tribo com essas características, cujos membros procuravam manter-se isolados dos civilizados.
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