A MORTE DO ESCOTEIRO “PADRE”
Nilson Montoril
Cachoeira do Paredão, no Rio Araguari,com um desnível de 9 metros e um potencial hidráulico de 180.000 HP. |
Em
julho de 1957, integrantes do Grupo de Escoteiros Católicos São Jorge realizaram
um passeio à área onde estava situada a cachoeira Paredão, cujo potencial
hídrico já havia sido previamente estudado e deveria favorecer a construção de
uma hidrelétrica. Essa pretensão do Território Federal do Amapá possuir uma
hidrelétrica fora evidenciada quando, em 1945, o governo federal iniciou uma
série de debates com a Hana Corporation, empresa norte-americana interessada na
exploração do ferro do Rio Vila Nova. O ferro extraído não seria mandado para
fora do Amapá e uma siderúrgica o beneficiaria. Em 2 de março de 1956, foi publicada a Lei nº 2.740, decorrente de um
projeto de lei que o Deputado Federal pelo Amapá, Coaracy
Monteiro Nunes tinha apresentado na Câmara Federal autorizando a criação da Companhia de Eletricidade do Amapá. Á época do passeio dos escoteiros os trabalhos preliminares para a realização da grande obra já estavam em andamento, mas tudo ainda era inóspito. Na
organização do “acampamento” estavam os chefes escoteiros Expedito Cunha Ferro,
o popular “91” ,
Humberto Álvaro Dias Santos e o Padre Ângelo Biragui, então orientador
espiritual dos jovens escoteiros e vigário da Paróquia São José.
A região
cortada pelo Rio Araguary era muito aprazível e praticamente intocada. Caça
havia em abundância e podia ser vista no meio da estrada de chão que ligava
Macapá ao canteiro de obras pro edificação da usina. Presidia a Companhia de
Eletricidade do Amapá o senhor Tupy Correa Porto e o Diretor Gerente era o odontólogo Amiraldo Elleres Nune, primo do governador
Janary Gentil Nunes, que também era entusiasta pelo escotismo. Nossa viagem até
o Paredão ocorreu em um caminhão cedido pela CEA e nos deixou relativamente
apreensivos devido ao traçado bastante irregular da estrada, onde prontificavam
subidas e descidas abruptas. Partimos antes do alvorecer e todo mundo ia
acomodado debaixo do encerado locomotiva do caminhão e bem abrigados do frio.
No canteiro de obras ocupamos uma casa que servia de escola, mas que se
encontrava vazia em virtude das férias escolares. No primeiro dia do
acampamento procedemos a hasteamento da bandeira nacional, tomamos café com pão
torrado, leite, queijo e manteiga que eram mandados para o Brasil, pelos
Estados Unidos da América, através da “Campanha Eliança Para o Progresso”. O
contingente era formado por pioneiros, escoteiros e lobinhos e não excedia a 30
indivíduos. Após o café o chefe Humberto Dias dividiu o grupo em duas patrulhas:
Tucunaré e Aruanã. A patrulha Tucunaré, da qual eu fazia parte teve o
privilégio de ser a primeira a chegar bem perto da cachoeira Paredão e fez isso
com redobrados cuidados sob as orientações do chefe 91. Para evitar que algum
moleque afoito tentasse nadar no remanso formado pelas águas que desciam da
queda d’água, o chefe 91 escolheu um local por onde descia um pequeno volume de
água, formando um córrego estreito e raso. Os pioneiros e escoteiros mais
velhos se instalaram a cerca de 2 metros da foz desse córrego e barravam
qualquer tentativa de aventura dos mais afoitos. Passamos a manhã tomando banho e
percorrendo locais com águas represadas em busca de peixes para o jantar. Na
manhã do segundo dia foi a vez da “Patrulha Aruanã” conhecer o local que tinha
sido batizado de “Recanto Encantado”.
A “Patrulha Tucunaré” recebeu o encargo
de preparar o almoço, carregar água, coletar lenha e limpar a área do
acampamento e a escola. As mesmas atividades que a “Patrulha Aruanã” tinha
realizado no dia anterior. Por volta das 10h30min horas, do alto da colina onde
estava edificada a escola, observamos que os componentes da Patrulha Aruanã
estava voltando ao acampamento e muitos choravam copiosamente. Indagamos o que
havia acontecido e recebemos como resposta a notícia de que o "Padre havia
morrido afogado", mas seu corpo estava desaparecido. De imediato pensamos que o
afogado fosse o Padre Ângelo Biragui. Entre os que tinham permanecido no
acampamento encontrava-se o José Pereira, jovem muito prestativo, que derrepente
parou de brincar e ficou olhado para os escoteiros retirantes, certamente
procurando localizar seu irmão Antônio Pereira, exatamente o menino que tinha
morrido. Sem vê-lo, José deduziu que a vitima fatal era o Antônio, cujo apelido
no Oratório São Luiz era padre. Chorando muito se retirou para o local onde
estava atada sua rede e ali permaneceu sem procurar saber detalhes do
acontecido. Antônio Padre era muito irrequieto e excelente jogador de petecas.
Disputar uma partida com ele era certeza de que ficaria de mãos vazia.
Casas da vila residencial construída na área da cachoeira do Paredão. Posteriormente este panorama mudou bastante. |
Enquanto trabalhadores do canteiro de obras tentavam localizar o corpo do Antônio, os escoteiros se mantinham em silêncio e acomodados. O Antônio não sabia nadar,mas simulava fazê-lo usando as mãos que tocavam no fundo do córrego para impulsionar seu corpo. Fez isso inúmeras vezes até descuidar-se e passar do marco fincado na areia visualizando o ponto que não deveria ser ultrapassado por ninguém. Escoteiros experientes, acostumados a nadar no canal de Santana se atiraram atrás do Antônio,mas a força d'água era descomunal. Uma coisa intrigante aconteceu no afogamento do "Antônio Padre": ele sentou de uma só vez, certamente puxado para o fundo do rio pelo redemoinho que existia no local. As buscas foram feitas até as 18 horas e
suspensas para reiniciar no dia seguinte. Por volta das 19 horas, com todo o
material de acampamento e nossos objetos pessoais arrumados, embarcamos no
caminhão e rumamos para Macapá. Perto das 22 horas o caminhão adentrou no
quintal da Prelazia de Macapá e nos recebemos ordens para nos alojarmos no
Salão Paroquial Pio XII, um barracão onde eram realizadas atividades
religiosas, projeção de filmes e encenações de peças teatrais.
Todos deveriam
permanecer em silêncio e só deixar o barracão depois que o chefe Humberto
Santos fosse à casa do senhor Raimundo Pereira cientificá-lo sobre a morte do
filho. Entretanto, alguns meninos não obedeceram à ordem recebida, abandonaram
o barracão e foram espalhando a macabra noticia a seus vizinhos, entre eles o
seu Raimundo. O corpo do Antônio Pereira só foi encontrado uma semana após o
sinistro. Mergulhadores o localizaram preso a uma pedra no fundo do rio
Araguary, ali mantido pela força descomunal da água que descia da cachoeira. Em
adiantado estado de decomposição e bastante danificado pelos peixes e pelo
atrito contra as pedras submersas, o que restou foi sepultado no cemitério da
vila de Ferreira Gomes. Em 1960, seus despojos foram trazidos para o cemitério
Nossa Senhora da Conceição e enterrado ao lado dos seis escoteiros que morreram
afogados no Rio Amapari, em Serra do Navio, quando uma ponte pênsil da ICOMI
desabou.
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