domingo, 10 de fevereiro de 2013

SEU LIMA, DIGNIDADE E SABEDORIA CABOCLA





                                    SEU LIMA, DIGNIDADE E SABEDORIA CABOCLA

                                                                                                    Nilson Montoril

Raimundo Ferreira Lima, o neto Nilson Montoril de Araújo Júnior e o bisneto Lucas Brito de Araújo, filho do Júnior.Foto tirada na garagem da residência do casal Nilson Montoril de Araújo e Rosa Maria Lima de Araújo, em Macapá, em 2009.
                        No período áureo da produção da borracha na Amazônia, que se estendeu até 1910, o cearense Antônio Cavalcante dos Santos deixou sua terra natal para riscar seringueiras nas terras de Gurupá e Mazagão. Em Gurupá conheceu a paraoara Raimunda Ferreira Lima e a tomou por companheira. Pouco tempo depois, a 16 de abril de 1915, nascia o primeiro filho do casal, Raimundo Ferreira Lima. Esta data está registrada no Registro Geral de Raimundo Lima, porém ele costumava comemorar seu aniversário no dia 31 de agosto de 1915, porque este seria o real dia de seu nascimento. Embrenhado nas matas e vivendo em ambiente hostil, Antônio Cavalcante passava a maior parte do tempo ocupado em sua dura atividade, mas no período de inverno quase sempre estava em casa. Depois de ter gerado Raimundo Lima, o cearense e sua consorte colocaram no mundo Manoel Ferreira Lima e Ernestina Ferreira Lima. Os filhos ainda eram crianças quando, por volta de 1922, A malária vitimou o destemido nordestino, deixando Dona Raimunda Lima viúva e seus rebentos órfãos. Como Antônio Cavalcante era freguês do português João de Oliveira, ao qual vendia quase toda sua produção de látex, este mandou buscar Dona Raimunda Lima e os filhos para residirem na localidade de Sossego do Rio Maracá-Mirim, no município paraense de Mazagão, bem em frente da Ilha Pequena, margem esquerda do Rio Amazonas. Neste aprazível lugar o lusitano mantinha uma serraria e uma casa de comércio bem sortida. Dona Raimunda pegou seus “quase nada” e os filhos e tomou o rumo do Sossego. Raimundo Lima tinha apenas sete anos de idade, mas era muito esperto, fato que agradou ao português João de Oliveira. No Sossego, Dona Raimunda passou a realizar serviços domésticos na casa do patrão até arranjar um novo amor e com ele foi viver em outro lugar deixando Raimundo aos cuidados de Dona Doca, esposa de João de Oliveira. Do novo relacionamento nasceu a filha Constância Lima, a irmã mais nova de Raimundo Lima. Esse lusitano havia exercido a atividade de fotógrafo assim que chegou a Amazônia, nome que uma garotinha interiorana não sabia pronunciar corretamente e dizia “Potock”. Assim João Oliveira ficou conhecido na região de Afuá, Mazagão e Gurupá, tanto que nominou seu empreendimento comercial como “Casa Potocka”. Também adicionou a grafia ao seu nome de batismo: João de Oliveira Potocka. Raimundo Lima já estava com 20 anos de idade, em 1935, quando chegou ao Sossego, a senhora Catarina dos Santos Martins, viúva do português Antônio da Silva Martins.
Raimundo Ferreira  Lima e a esposa Anacleta Martins de Lima em frente a "Casa Potocka".


 Esse cidadão veio tentar a vida no Brasil a bordo de um navio que aportou em Manaus, cidade que o abrigou por alguns anos. Depois desceu o Rio Amazonas e pelo canal sul, conhecido como Rio Pará, se estabeleceu em Breves para trabalhar com um conterrâneo luso. Como era amigo de Alexandre Ferreira da Silva, proprietário de um empório comercial no Rio Ipanema, sua família foi por ele amparada. Dona Catarina tinha a companhia do filho Nicolau dos Santos Martin, o mais velho dos rebentos e das filhas Anacleta Martins de Lima, Ester,Emilia e Francisca. Um olhar apaixonado trocado entre Raimundo Lima e Anacleta fez surgir entre os dois um forte sentimento que os levou ao casamento em 1937. Anacleta nasceu dia 26 de abril de 1921, em na cidade de Breves e estava com 16 anos de idade quando contraiu núpcias com Raimundo Lima que transitava pelos 22 anos, sendo, portanto, seis anos mais velho que ela. O casamento os uniu por mais de 76 anos. Da união nasceram: Maria José, Maria de Lourdes, Rosa Maria, Ana Maria, Raimunda, Marinete, Maria Izabel e Antônio Carlos. Casado, Raimundo Lima ganhou o status de “Seu Lima”, o braço direito de João de Oliveira Potock. Eclético, “Seu Lima” assessorava-o no gerenciamento do comércio, da serraria, fabricava pão, caçava,pescava e vendia gêneros de alimentação no garimpo do Rio Vila Nova. Numa das viagens que fez para o garimpo encontrou o garoto Hilário Ribeiro, então com quatro anos de idade, que vivia relegado e doente. Ao retornar para o Sossego levou o pirralho e o criou como filho. Ainda agregou a sua família os sobrinhos Antônio e Nazaré Lima, filhos de seu irmão Manoel Lima.

Fotografia tirada na frente da "Casa Potocka", na localidade de Sossego do Rio Maracá Mirim, municipio de Mazagão. Aparecem no flagrante fotográfico Raimunda, Lourdes, Ana Maria, Anacleta Martins com a filha Izabel no colo,  Raimundo Lima e a garota Regina. Quando a foto foi batida as filhas Maria José e Rosa Maria residiam em Belém com a tia Rosalina Oliveira.
Quando o senhor João de Oliveira Potock adoeceu e precisou tratar-se em Belém, o Sossego só não foi invadido e saqueado por elementos inescrupulosos devido à fibra do “Seu Lima”. Sua atitude lhe valeu várias ameaças de morte que cessaram apenas quando ele foi nomeado para a função de Comissário de Polícia A atividade não lhe dava uma remuneração fixa. A compensação era a utilização de taxas e emolumentos cobrados de terceiros que requeriam licença para realizar festas dançantes e outras atividades obrigadas ao pagamento das citadas tributárias. O valor arrecadado não rendia o suficiente sequer para cobrir as despesas com investidas de ordem policial que “Seu Lima” precisava realizar. Sua vida de viajante a serviço da firma Potock, quase sempre a remo e às vezes pilotando ubás impulsionadas por motores de popa Archimedes de 12 HP e Johnson de 25 HP, neste caso só quando o trecho a ser coberto era mais longo, lhe proporcionou o conhecimento de toda a região entre o rio Matapi e o rio Jary. Ele listava sem vacilar todos os tributários do rio Amazonas, tanto pela margem esquerda como pela direita. Também empreendeu incursões pelas localidades de João da Costa, Capitão e Rio Preto, todas bem produtivas propriedades do pai de criação.
Anacleta Martnis de Lima e Raimundo Ferreira Lima no pátio da casa do genro Nilson Montoril. Á época, o casal morava com a filha Rosa Maria Lima de Araújo.
 Eu conheci o casal Raimundo Lima e Anacleta Martins em 1965, quando comecei a namorar a Rosa Maria, minha esposa, que tinha 17 anos de idade e residia com o casal Sebastião Fernandes de Oliveira e Joaquina Menezes de Oliveira, Dona Quinoca, ao lado da casa de meus pais, em Macapá. Fui ao Sossego pedir autorização de seus genitores para namorá-la e fui muito bem recebido, principalmente por ser filho de Francisco Torquato de Araújo, um grande amigo de João Potock e do próprio casal Raimundo Lima e Dona Anacleta. Tornei-me seu genro em 1972, quando casei com a Rosa. “Seu Lima” era mestre na gapuia, na colocação de malhadeira, no lançamento da tarrafa, no uso da linha de pescar, no arremesso da zagaia, no manejo de cartucheira, na construção de matapi, cacuri e pari, em pilotar canoa a vela e motores de popa, em singrar as águas nas pequenas “montarias” e rústicos cascos.

Comemoração dos 93 anos de vida de Raimundo Ferreira Lima realizada na residência de sua filha Ana Maria. Ele  cortava o singelo bolo de aniversário tendo a rodeá-lo as filhas Rosa ,Lourdes, Izabel, a esposa Anacleta Martins de Lima, o filho Antônio Carlos e a  filha Ana Maria. Em segundo plano aparecem os netos Marcelo e Márcio. De costas, vemos três dos seus 33 bisnetos.
Mesmo tendo uma prole numerosa e enfrentar constantes adversidades, “Seu Lima” soube como obter o sustento de sua família e instruir os filhos. Criava porcos, patos e galinhas que consumia nas ocasiões festivas a quando pesca se tornava difícil, na fase invernosa. Anualmente, eu, Rosa e meus filhos viajávamos até o Sossego a fim de passarmos a Semana Santa e ficávamos abrigados na velha casa do casal, hoje demolida. Em 1994, quando o Sossego já não rendia mais nada comercialmente e os imóveis de valor tinham sido vendidos, Raimundo Lima e Anacleta acataram os reclamos dos filhos e genros e vieram morar em Santana. Por iniciativa dos filhos ele conseguiu uma aposentadoria pelo INSS e ela Dona Anacleta obteve um singelo beneficio previdenciário. A idade avançada de ambos obrigou-os a vir residir em Macapá. Já não podiam morar sozinhos e assim, em sistema de rodízio, coabitaram com os filhos. Uma conversa com meus sogros era o mesmo que ouvir uma aula sobre questões interioranas. Dia 4 de fevereiro de 2013, “Seu Lima” deixou o plano terrestre e partiu para a eternidade. Completaria 98 anos dia 16 de abril. Até o ano de 2010, “Seu Lima” gozou de boa saúde, mas a senilidade é terrível e mina a vida dos humanos. Passou então a enfrentar alguns problemas próprios de quem tem vida longa sem que o organismo se mantenha funcionando cem por cento. Ultimamente, ”Seu Lima” vivia na casa da filha Ana Maria e do genro Luiz Melo e nada lhe faltou até que exalasse o último suspiro.

  Pelo levantamento que fiz, Raimundo Ferreira Lima teve sete filhos biológicos, um adotivo e amparou dois sobrinhos. Seus filhos lhe deram 50 netos. Até o momento em que ocorreu sua morte já haviam nascido 31 bisnetos e duas de suas netas estavam prestes a ter filhos, elevando o número para 33. De quebra, ainda existem dois trinetos. No total, somando filhos, netos, bisnetos e trinetos, a união de Raimundo Lima e Anacleta Martins originou o aparecimento de 93 pessoas. Agregando a quantidade de esposas dos netos e bisnetos, o montante de viventes ultrapassa a casa dos cento e dez. Raimundo Lima sempre se deu muito bem com seus seis genros e duas noras, todos amigos fieis que lhe devotavam a afeição dada a um pai. Conseqüentemente, podemos afirmar que, em linha direta, 101 criaturas constituem a família de “Seu Lima”, hoje desfalcada dele, mas que tem na senhora de Anacleta Martins de Lima, Dona Mulata, sua matriarca. Ostentando 91 anos de idade, Anacleta Martins de Lima alcançará os 92 no vindouro dia 26 de abril e se constitui no centésimo segundo ser de uma família tão extensa. Raimundo Ferreira Lima foi sepultado no Cemitério Nossa Senhora da Conceição, no centro de Macapá, onde também estão enterrados os restos mortais do genro Gregório Godinho Nunes.

Raimundo Ferreira Lima, em 2005, no pátio da casa da filha Rosa Maia e do genro Nilson Montoril de Araújo, em Macapá.

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