sábado, 23 de julho de 2011

IMAGINAÇÃO FARTA NA IMPLANTAÇÃO DA CAVALHADA EM NOVA MAZAGÃO

                          
      
             Por Nilson Montoril

No inicio da edificação da Vila de Nova Mazagão as casas ficavam mais recuadas, abrigadas pela mata. A igreja vista na fotografia, dedicada a Nossa Senhora da Assunção é a 4ª a ser erguida na comunidade. São Tiago não é o padroeiro de Mazagão e sim Nossa Senhora da Assunção, que também era a padroeira da Mazagão do Marrocos.

            Entre os anos de 1770 e 1777, muito trabalho foi desenvolvido pelo governo do Grão Pará na instalação da Vila de Nossa Senhora da Assunção, no rio Mutuacá. Aos poucos, algumas famílias dos ex-moradores da Mazagão africana que se encontravam temporariamente em Belém foram sendo transferidas para o novo burgo. Segundo a tradição, apenas em agosto de 1777, por ocasião da festa alusiva a São Bartolomeu, dia 24 do referido mês, se deu o inicio das encenações das lutas que os soldados cristãos portugueses travaram contra os mouros na Mauritânia (Marrocos). A partir do ano acima referido, os organizadores do evento procuraram narrar os principais feitos históricos acontecidos no Castelo Real de Mazagão, sem esquecerem os aspectos religiosos que fortaleceram os combatentes lusitanos. Assim, a imaginação farta do povo migrante foi traçando uma colcha de retalho costurada com fatos extraordinários de cunho divino ocorridos na Espanha, em Portugal e até mesmo na Palestina. Afirma-se que, por ocasião da Batalha de Clavijo, travada no dia 23 de maio de 840, entre os castelhanos e os mouros, surgiu no meio das tropas cristãs um cavaleiro iluminado que matava com facilidade os inimigos da fé católica. Seria esse fantástico ginete Sant’Iago, que logo passou a ser o patrono dos combatentes espanhóis. Sobre Santiago fiz amplos comentários no artigo publicado no domingo retrasado com o título “Tiago Maior”. Esse apóstolo de Jesus Cristo é ainda hoje o padroeiro da Espanha e de muitas terras que os espanhóis descobriram. O santo em questão também foi patrono da cavalaria portuguesa, assim permanecendo até o ano de 1385, quando outro santo católico o substituiu. Falo de São Jorge, cuja devoção em Portugal é atribuída aos cruzados ingleses que ajudaram o Rei Dom Afonso Henriques a conquistar Lisboa em 1147, tirando-a das mãos dos mouros. Porém, apenas no reinado de Afonso IV é que o uso de “São Jorge!!” como grito de batalha se tornou regra substituindo “Santiago!!” O santo guerreiro nascido na Capadócia é apontado como o responsável pela vitória dos portugueses sobre os mouros na batalha de Aljubarrota. A substituição formal de Santiago por São Jorge como patrono de Portugal verificou-se no reinado de Dom João I . Em 1387, pela primeira vez a imagem de São Jorge a cavalo saiu na procissão de Corpo de Deus pelas ruas centrais de Lisboa.

Santiago Mata Mouros ou Conquistador. Ele teria lutado ao lados dos espanhóis na batalha de Clavijo e dizimado grande parte dos combatentes muçulmanos. Há correntes no catolicismo que não aceitam a versão guerreira do apóstolo.
            Quando os portugueses se fixaram no Marrocos, em 1502, São Jorge já figurava como patrono do exército luso. Ele teria nascido na Capadócia, região do sudeste da Anatólia, que hoje faz parte da Turquia. Seu pai morreu em combate quando Jorge ainda era criança. Sua mãe, natural de Lida e proprietária de muitos bens o levou para a Palestina, mandando educar o filho com esmero. Ao atingir a adolescência, Jorge ingressou no exército romano e rapidamente foi promovido ao posto de capitão. Devido a sua índole guerreira, conquistou a admiração de seus superiores. Em reconhecimento a seus feitos, o Imperador romano concedeu-lhe o titulo de conde da Capadócia. Aos 23 anos de idade já vivia na corte imperial romana, exercendo a função de Tribuno Militar, com direito a uma cadeira no Senado. Sensibilizado com a situação de extrema pobreza em que vivia a população de Roma, Jorge distribuiu entre eles os bens herdados de sua genitora. A expansão do cristianismo no meio da gente pobre de Roma acabou contagiando o jovem tribuno. No decorrer de uma sessão do Senado, onde um decreto do Imperador Diocleciano, buscando respaldo para exterminar os cristãos estava sendo votado, Jorge protestou contra tal barbárie, afirmando não ter sentido matar pessoas inocentes só porque elas não acreditavam nos falsos ídolos que o império adorava. Disse mais, se acreditar num único Deus que pregava o amor ao próximo significava ser seguidor de Cristo, ele também era cristão. Diocleciano tentou fazê-lo desistir da fé cristã. Como não conseguiu, mandou torturar o jovem capitão. Ao final de cada sessão de tortura, Jorge deveria ser levado à presença do imperador para publicamente renegar a fé em Jesus Cristo. Jorge se manteve irredutível e contagiou vários integrantes da corte romana, inclusive a esposa de Diocleciano. Por ordem do imperador, Jorge foi exilado para Nicomédia, na Ásia Menor, e aí degolado a 23 de abril do ano 303. Seus restos mortais foram levados para Lida, terra natal de sua mãe e sepultado conforme a fé católica. Anos mais tarde, quando o cristianismo era a religião oficial do império romano, o imperador Constantino mandou erguer um suntuoso oratório no local do sepulcro do santo mártir. A devoção a São Jorge cresceu rapidamente, motivando a construção de templos em todos os redutos do cristianismo. No Egito, no primeiro século após sua morte havia 4 igrejas e 40 conventos. No século V, contava-se 5 igrejas de São Jorge em Constantinopla. Não são poucos os relatos de soldados portugueses que afirmaram ter visto São Jorge envergando seu vistoso uniforme do exército romano abrindo fileiras entre as tropas mouras e assim facilitando a ação dos combatentes cristãos.
A gravura de São Jorge combatendo um dragão é sobejamente conhecida no universo. Ainda assim, na forma do Concilio Vaticano II, São Jorge foi relacionado entre os santos que perderam espaço nos altares dos templos católicos. Em Mazagão Velho, por ocasião da festa de São Tiago um cidadão da comunidade o personifica no trajeto da  procissão.

            Aliás, os propagadores da fé cristã sempre se valeram de lendas dos povos contatados para fazê-los aceitar o cristianismo. No caso de São Jorge, identificaram-no com Sigurd, um destemido caçador de dragões da mitologia nórdica. Sigurd ficou célebre depois de matar um dragão que exigia dos moradores de um reino, anualmente, uma donzela como alimento e pacto de paz. É por isso que São Jorge costuma ser retratado matando um dragão. Nas encenações das lutas entre cristãos e mouros, feitas em Mazagão Velho, São Jorge aparece em plano secundário. O destaque maior é para Santiago, morto por ordem de Herodes Agripa I no dia 25 de julho do ano 44. Há algum tempo outra figura lendária evidenciada nas primeiras encenações não tem sido lembrada. Trata-se de Josué, filho de Nun, personagem bíblico que substituiu Moisés na condução dos filhos de Israel à terra que o Senhor lhes prometeu além do rio Jordão, “desde o deserto e desse ao Líbano até ao grande rio Eufrates – todo o país dos hiteus – e até ao mar grande para o ocidente”. Josué desempenhou com muita determinação a missão que lhe foi confiada, conquistando todos os reinos existentes no território que Deus reservou ao seu povo. Foram tomadas as cidades de Jericó, Hai, Gabaon, Maceda, Libua, Láquis, Eglon, Hebron, Dahir, Asor e vários outros reinos.

Josué ordenando:" Sol, detém-te sobre Gabaon, e tua Lua, sobre o vale de Ajalon". O feito extraordinário é citado na Biblia Sagrada. Antes do Concílio Vaticano II, São Josué era venerado pelos adeptos do catolicismo.

Por ocasião da batalha contra forças coligadas dos amoreus, chefiadas pelos reis de Jerusalém, Hebron, Jerimot, Láquis e Eglon, aconteceu um fato extraordinário. Combatendo os amoreus, próximo à cidade de Gabaon, os israelitas venciam o embate enquanto o sol declinava no poente. Josué orou ao Senhor e exclamou: “Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu lua, sobre o vale de Ajalon”. O astro rei e a lua só retomaram seus ciclos normais depois que a vitória estava consumada. A imaginação dos migrantes lusitanos, aliada a religiosidade alicerçada sobre glórias diversas do judaísmo e do cristianismo, colocaram numa mesma batalha irreal as figuras de São Josué, Santiago e São Jorge.  

           

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