terça-feira, 19 de julho de 2011

O CABOCLO ( Governador Janary Gentil Nunes)



             Postado por Nilson Montoril

 Janary Gentil Nunes, com o uniforme de Capitão do Exército, Arma de Infantaria
                             Amazônida, e nascido na cidade paraense de Alenquer, Janary Nunes conhecia muito bem a lida do caboclo. Ao assumir o governo do Território Federal do Amapá, a 25 de janeiro de 1945, em Macapá, externou de imediato sua preocupação com a situação deste homem que poucos compreendem e muitos rotulam como indolente. Fez questão de escrever o primeiro editorial do jornal AMAPÁ Nº 1, lançado no dia 19 de março de 1945. A matéria estampou a primeira pagina do citado semanário e aqui segue fielmente transcrita, reipeitada a ortografia da época.
            
                                                              "O CABOCLO"                                                                                           
            “Durante 30 anos escutei as expressões com que o tratavam: fraco, indolente, preguiçoso, mole, sem vontade. Desprezava o trabalho, o conforto e a família. Nascera para escravo.
              Apontavam-lhe um DESTINO: ser mandado e obedecer.
              Seu sonho era aquele: morar numa cabana coberta de palha e de chão feito de paxiúba, em cima da água no inverno e do mato no verão, mais animal do que homem, plantando uma “tarefa” de mandioca e pescando ou caçando apenas quando forçado pela necessidade. Habituado a lesar o patrão, a inventar uma desculpa para sua miséria e dar um sorriso malicioso de triunfo ao “fintar” a sua vitima.
               Eis a síntese de sua fama, como foi divulgada pela bôca do povo – que é a voz de Deus.                     
               É verdade que sempre escutei um desmentido veemente e apaixonado na opinião de meu pai, que o considerava um titã.

               A história do CABOCLO ainda não foi, nem pintada, nem escrita, nem musicada. Dará quadros, livros, sinfonias, em que as cores mais esquisitas, os dramas mais palpitantes e as combinações de sons mais comoventes que conhecemos, sucumbirão à medida do contraste.                
               É preciso conhecer êste homem que mora isolado entre a água e a floresta, na beira do Amazonas e seus afluentes.
Temendo ser "ferrado" pela arraia, o experiente caboclo que segura o talão da rede de arrasto afastado da margem não dispensa a canoa. Ele sabe que  ao ser pisada a arraia usará o esporão para atingí-lo. Uma ferroada de arraia é  muito dolorida e custa a sarar. O pescador que segura o talão direito da rede arrasta os pés no chão. Se tocar na arraia,ela foge

               Nasceu numa rede suja, tratado na primeira hora por mãos de “curiosas” inexperientes, sentiu como carinho inicial na vida, quiçá, uma picada de carapanã. Aos dez dias de idade recebeu a visita do acesso de impaludismo, companhia tenaz que o seguirá como sombra volúvel, sumindo hoje ao mudar de lugar para voltar amanhã ao toma banho frio ou passar horas ao sol quente. Cresceu sem roupas nem exigências, tendo por carro de passeio uma caixa de sabão e por berço de seda uma esteira rústica da taboa.                                                                                                           
               Se a mãe não póde amamentá-lo, toma caribé ou mingau de macacheira e, não raro, antes do primeiro aniversário, já bebeu a cuia de assai ou de bacaba e provou o sabor do charque rançoso e do piracuí seco.
               E se desenvolve, utilizando precocemente os seus músculos, adulto com 6 e 7 anos, ao ataque das verminoses, mordido por insetos, pisando descalço no chão, contando os dias em que não vem a febre, bebendo de manhã café com farinha, jamais comendo legumes, sem beber leite e sem saber o que é vitamina, curando as suas doenças com chás, numa lata ciclópica, em que o heroísmo é tão imenso que parece inconsciente.
               Preguiçoso? Mas qual é o único sêr que afronta de peito aberto esta natureza bárbara, criança ainda em plena transformação, penetrando-lhe o arcano? Quem é que sobe os rios, remando dias seguidos com um rancho insignificante que não alimentaria o mais sóbrio branco civilizado? Quem fura o mato, este cipoal de lianas povoadas de emboscadas hostis e traz de lá os frutos? Qual é o homem que extrái as matérias primas da produção amazônica?
Numa pequena canoa ou montaria, o caboclo faz do rio a sua estrada e vai para onde deseja. Costuma levar como acompanhante um dos filhos a fim de que aprenda desde cedo a lidar com os recursos que a natureza lhe oferece. 

               Quem o calunia não sentiu a sua força. Andou deitado sob uma tolda, espreguiçando-se na cadeira a bordo de um navio, ou nos caminhos que só o CABOCLO desbravou ou, ainda, recêbendo atrás de um balcão, sem fadigas nem receios, aquilo que ele apanhou entre mil perigos. Porque o adventício não o iguala na resistência e na coragem. Apresenta-se ao seu lado armado de remédios e socorros com que ele nunca contou. O CABOCLO só tem satélite digno no nordestino – o homem das “cheias” e o homem das “sêcas”- um quase a morrer afogado e o outro quase a morrer de sêde, este pagando caro a sua audácia, bravos que se irmanam para enriquecer os que o acusam.
                Indolente? Mas quem teve infância e adolescência igual à sua? Como poderá ser vibrátil e ansioso de riquezas quem existe sozinho numa beira de rio, iluminando-se com querosene, prisioneiro da mais insidiosa cadeia econômica? Quem nunca aprendeu a ler e nem sabe para que serve?
                Sem vontade? Sem vontade ele? Só dizem os que não o viram, estátua de bronze impassível ao vento e à chuva, à treva e ao sol, conduzindo a embarcação nas corredeiras, olhar atento no canal e nas pedras: quem não o divisou embrenhando-se na floresta, exposto às cobras e às onças e percorrendo léguas e léguas a conduzir cargas pesadas: quem não o contemplou trabalhando na água ao tremor do acesso palustre.
Nas regiões de solom mais elevado, onde o percurso pela floresta é longo, o caboclo utiliza o burro para transportar a carga. O cachorro, seu fiel companheiro segue seus passos.

                Não o caluniemos. Que será desta gente quando tiver educação e saúde?
                São “heróis” os que voltam dos campos de batalha, depois de alguns meses de luta. Que título se dará a quem venceu o combate travado cotidianamente para sobreviver, ferido mil vezes, não por armas limpas, mas por espinhos, escorpiões, marimbondos, arraias, pedras, cobras, insetos e micróbios?
                O CABOCLO traz em si uma fortaleza inconquistável: o ESPÍRITO NACIONAL. Para ele o estrangeiro é o homem de língua atrapalhada, que arria com qualquer febrezinha e que teme os mosquitos como se fossem fantasmas. É o “brabo” mais errado que conhece. Copia seus hábitos, mas não os inveja. Tomai como exemplo, sibaritas do culto aos deuses de fora e do amesquinhamento dos próprios.
                Vamos para frente, CABOCLO! O Brasil precisa de ti. Vivestes até hoje? A morte não te vencerá mais! Entrega as veias, recebe o sangue novo. Escuta a idéia nova. Podes continuar sorrindo e desconfiando... Mas caminha conosco que a nossa trilha só tem um destino – e esse DESTINO tu mesmo dirás ao mundo do porvir qual é. ”

       (Artigo publicado no jornal AMAPÁ nº 1, edição de 19 de março de 1945, na primeira página)

Um comentário:

Auree SViana disse...

E pensar que hoje, temos sangue caboclo transitando em nosso corpo, esse caboclo vive em mim, em ti, em nós,...
Aurea Batista de Sá Viana.