UM SINGULAR
SOLDADO DA BORRACHA
Por NILSON
MONTORIL
Em viagem pelo
Brasil, o inglês Henry Wickhan coletou, em 1876, cerca de 70 mil sementes de
seringueira, nas regiões dos rios Madeira e Tapajós, mandando-as para a
Inglaterra. As sementes foram enterradas em viveiros, na cidade de Kew e 7 mil
delas brotaram. Mais tarde, transplantadas para o Ceilão, favoreceram a
formação de seringais racionalmente plantados. Dentro de poucos anos o plantio
dominou a produção mundial. Enquanto a borracha nativa do Brasil decaiu de 60
mil toneladas, em 1910, para 42 mil toneladas em 1920, a borracha plantada,
no mesmo período, subia de 8 mil toneladas para 360 mil toneladas. Em 1882, a borracha ocupava o
terceiro lugar, entre as exportações do Império do Brasil, superada só pelo
café e o açúcar, e em torno dela girava toda a formação histórica da região
Amazônica. Em 1888-1890 e em 1900- 1901, novas grandes secas no sertão
nordestino atiraram para o extremo-norte outras levas de sertanejo. A presença
dos sertanejos nos seringais da Amazônia provocou aumento na produção da
borracha e ocasionou mudanças de hábitos, que Euclides da Cunha registrou no
livro “A Margem da História”, nos seguintes termos: “Os tristonhos barracões
cobertos de folhas de ubussu transmudaram-se em vivendas regulares ou amplos
sobrados de pedra e cal. São imagem material do domínio e da posse definitiva”.
De 1895 até
1911, o Brasil foi o maior de todos os outros fornecedores remidos de produção
de borracha no mundo. O ponto máximo foi alcançado em 1911, vindo a seguir o
declínio que se tornou profundo em torno de 1923. Com a crise do ouro negro,
avultou a extração da castanha, que passou a ocupar então o primeiro lugar na
exportação do Amazonas e Pará. A lavoura voltou a ser praticada nas áreas de
seringais. Na fase áurea da borracha ela chegara a ser proibida. Não foi á toa
que, por volta de 1900, faltou mandioca na Amazônia, levando o caboclo a passar
fome. Quem tentasse praticar o cultivo de roça perdia a plantação e era expulso
dos seringais. Para atender as necessidades essenciais do seringueiro, os
proprietários de casas aviadoras valeram-se do regatão para transportar e
vender seus produtos. O regatão é um elemento de regateio, corporificado em um
barco que fazia o comércio na região, cujo negócio é feito a trôco de
mercadorias. O barco podia ser a “montaria”, o reboque ou navio a vapor, que
levava bugigangas diversas. De modo geral, o regatão era emissário de uma casa
de comércio de Manaus ou Belém. Nos barcos a vapor, onde o espaço era maior,
via-se, desde o alfinete até o arpão de pescar pirarucú. Encontravam–se
fazendas ordinárias, sêda, espelhos, perfumes, vestidos feitos, sabão, sapatos,
botinas, cigarro, fumo em rolo, folha de abade, balas, chumbo, pólvora, faca, terçado,
machado, sal, açúcar, café, farinha, peixe salgado, carne salgada, martelo,
serrote, pregos, linha de pesca, linha de costura, agulha, querosene, chapéu,
alpercata, fósforo, etc. O regateiro usava de muita lábia para convencer o
comprador. O seringueiro também usava de malicia desfazendo de alguns produtos
para forçar a redução do preço. Desdobrando–se em amabilidades, o regateiro
acabava fechando algum negócio, com promessa de embarcar, na descida da
embarcação, tanto quilo de borracha ou produtos que ele escolhia. Nem sempre o
comprador honrava o prometido, levando o regateiro à falência. O seringueiro
chamava ao ato expressivo do regateiro de ciganagem, porque o cigano sempre foi
considerado um comerciante traiçoeiro. Porém, nem todos os caboclos falhavam
com o pagamento dos bens adquiridos. A palavra dada era sagrada.
Julgo uma injustiça
dizer que o caboclo é vadio. Gente indolente e furtiva existe em qualquer
canto, mesmo nas grandes cidades. Os caboclos pobres e, dos sítios de
beira–rio, não se aventuravam a trabalhar para os fazendeiros porque perderiam
a rotina de uma vida meio livre. Caçavam, pescavam, colhiam castanhas e
sementes de cacau, murumuru, pracaxi, ucuuba, andiroba, patauá e outros
produtos que tinham boa aceitação no mercado. As mulheres teciam algodão,
faziam paneiros, matapis, jamaxis, fabricavam sabão com casca de cacau queimado
e óleo de andiroba, rapadura, mel de cana de açúcar e extraiam óleos de
sementes nativas. Tendo um dinheirinho para comprar os gêneros de alimentação
básica já estava bom à beça. Mas, poucos eram tão arrojados como o senhor
Antônio Leite Cavalcante. Este cidadão era um cabra de fibra e profundamente
honesto. Passou grande parte da sua vida morando só. Quando foram recrutados os
soldados da borracha, ele se apresentou como voluntário. Na forma do aviso nº.
1262, de 24 de maio de 1943, emitido pelo Ministério da Guerra, Antônio Leite
Cavalcante virou soldado da borracha, porque empregava suas atividades dentro
dos seringais em trabalhos ligados à extração da borracha. A atividade que ele
desenvolvia tinha importância bélica, necessária para os triunfos dos aliados,
na II Guerra Mundial. Recebeu roupa, alpercata, chapéu, rede, mochila, caneco,
prato fundo, garfo e colher. Enquanto durasse o esforço de guerra, os saldados
da borracha teriam as seguintes vantagens: cr$ 6,00 (cruzeiro) diários sem
atuar e cr$ 10,00 (dez cruzeiro) trabalhando; recebia 60% (sessenta por cento)
da borracha extraída; 50% (cinqüenta por cento) da castanha coletada e da
madeira derrubada; uso pleno da caça e da pesca; três tarefas de terra para
plantar, se a terra não fosse de fazendeiro. Segundo dados registrados pela
Comissão Administrativa de Encaminhamentos de Trabalhadores para a Amazônia -
CAETA, 16.325 trabalhadores do Nordeste foram encaminhados para os seringais,
entre novembro de 1942 a
8 de maio de 1945. Com eles vieram 8.055 dependentes, perfazendo o montante de
24.300 pessoas.
Antônio Leite Cavalcante passava o
verão riscando seringueiras e fabricando borrachas. No inverno ocupava-se das
roças e criação de xerimbabos. Tinha um sítio no Igarapé Grande, Município de
Mazagão, braço direito do rio Mutuacá. Colhia castanha nos vales dos rios
Cajary e Jary, precisando remar dias seguidos. À noite, sob a panacarica, tosca
tolda feita de varas, palhas e cipós, abrigava-se para recuperar energia
despedida durante o dia. Quando a II Guerra Mundial acabou a rotina de seu
Antônio não mudou. Os preços da borracha é que desabaram. Este fato fez a
castanha ganhar mais cotação no mercado internacional. Vale lembrar que, até o
anos de 1919, a
exportação da castanha ficava em 5 mil hectolitros. Em 1926 a Amazônia exportava
120.417 hectolitros. Desde 1946,
a infra-estrutura montada para a produção da borracha
foi transferida para a extração da castanha. Entre janeiro e abril ocorre o
ciclo da castanha. Como o período é das chuvas, o transporte fica mais fácil.
Antes de surgirem as cooperativas, os castanhais eram livres e cada castanheiro
agia por conta própria, sendo obrigado a entregar sua produção ao patrão que
lhe fornecia os víveres. Seu Antônio Cavalcante também teve o seu patrão, que
nem sempre foi correto. Lembro de um caderninho que ele deixou em casa, onde
estão anotados a quantidade de produção e os valores a receber. Ao contrário dos outros coletores de castanha, Antônio Cavalcante sempre tinha consideraveis cifras a receber. Pagamento em
dinheiro vivo era difícil de ocorrer. As agruras da vida poderiam ser atenuadas
pela companhia de uma mulher
Seu Antônio bem que tentou manter uma família, mas não foi feliz. A mulher o deixou e a uma criança. Um dia, enquanto foi rapidamente ao roçado, seu Antônio manteve o filho dentro de casa. A criança nunca havia descido para o terceiro, fazendo-o numa data que o pai não gostava de lembrar. Aproximando-se do rio, a criança escorregou no meritizeiro e foi ao fundo. Resgatado o corpo, deu-se-lhe sepultura em Mazagão Velho. Como lembrança do filho ela guardava uma simples muda de roupa e uma fotografia que ambos tiraram ao lado da Escola do Mazagão Velho em dia de festa cívica. Ele aparece de perfil e o filho de costa. Enganado por um fotógrafo inescrupuloso, que lhe prometeu fazer a criança ficar de frente, o crédulo amazônida topou a empreitada. A mudança não ocorreu e a nova cópia é igual à primeira. O fotógrafo mal caráter precisou sumir da região porque perdeu a freguesia e o Comissário de Polícia prometeu prendê-lo. Ainda assim, as fotos estão postadas em uma moldura semelhante à prata, a qual conservo na sala da minha casa. Antônio Cavalcante era padrinho de águas bentas da minha esposa, Rosa Maria Lima de Araújo. Sem a luz em seus cansados olhos, seu Antônio veio morar conosco, em Macapá. Um dia, fez-me um pedido. Queria que eu o levasse para a casa do senhor Manoel Correa, seu compadre, que residia próximo a foz do rio Mutuacá. Atendi ao seu rogo. No porto do senhor Manoel ele disse: “Nilson, agradeço a Deus, a ti e a Rosinha pelo carinho recebido. Esta é a última vez que tu me verás com vida. Vou morrer dentro de 10 dias”. Seu Antônio era vidente, benzedor e rezador de ladainhas. Tal qual ele previu, sua morte aconteceu, no dia 2 de maio de 1987, exatamente dez dias depois que o deixei no Mutuacá. A foto colorida em que Antônio Cavalcante está em pé na sua canoa foi tirada no porto da Escola Foz do Rio Mutuacá, distrito de Mazagão Velho, 1984. Na fotografia em preto e branco Antônio, ele prestigiava uma solenidade cívica na Escola Antônia Silva dos Santos, segurando a mão direita de seu pequeno filho.
Seu Antônio bem que tentou manter uma família, mas não foi feliz. A mulher o deixou e a uma criança. Um dia, enquanto foi rapidamente ao roçado, seu Antônio manteve o filho dentro de casa. A criança nunca havia descido para o terceiro, fazendo-o numa data que o pai não gostava de lembrar. Aproximando-se do rio, a criança escorregou no meritizeiro e foi ao fundo. Resgatado o corpo, deu-se-lhe sepultura em Mazagão Velho. Como lembrança do filho ela guardava uma simples muda de roupa e uma fotografia que ambos tiraram ao lado da Escola do Mazagão Velho em dia de festa cívica. Ele aparece de perfil e o filho de costa. Enganado por um fotógrafo inescrupuloso, que lhe prometeu fazer a criança ficar de frente, o crédulo amazônida topou a empreitada. A mudança não ocorreu e a nova cópia é igual à primeira. O fotógrafo mal caráter precisou sumir da região porque perdeu a freguesia e o Comissário de Polícia prometeu prendê-lo. Ainda assim, as fotos estão postadas em uma moldura semelhante à prata, a qual conservo na sala da minha casa. Antônio Cavalcante era padrinho de águas bentas da minha esposa, Rosa Maria Lima de Araújo. Sem a luz em seus cansados olhos, seu Antônio veio morar conosco, em Macapá. Um dia, fez-me um pedido. Queria que eu o levasse para a casa do senhor Manoel Correa, seu compadre, que residia próximo a foz do rio Mutuacá. Atendi ao seu rogo. No porto do senhor Manoel ele disse: “Nilson, agradeço a Deus, a ti e a Rosinha pelo carinho recebido. Esta é a última vez que tu me verás com vida. Vou morrer dentro de 10 dias”. Seu Antônio era vidente, benzedor e rezador de ladainhas. Tal qual ele previu, sua morte aconteceu, no dia 2 de maio de 1987, exatamente dez dias depois que o deixei no Mutuacá. A foto colorida em que Antônio Cavalcante está em pé na sua canoa foi tirada no porto da Escola Foz do Rio Mutuacá, distrito de Mazagão Velho, 1984. Na fotografia em preto e branco Antônio, ele prestigiava uma solenidade cívica na Escola Antônia Silva dos Santos, segurando a mão direita de seu pequeno filho.
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