sexta-feira, 27 de maio de 2011

VISITA DA VIRGEM DE NAZARÉ À AMAZÔNIA


            Por Nilson Montoril       

                                                                                 
Nossa Senhora, a Rainha da Amazônia

            Antes dos Abarés (aba=homem e ré=diferente), ou seja, os Padres Jesuítas, iniciarem seus trabalhos de catequese na Amazônia, nossos indígenas possuíam belíssimas lendas sobre a criação do mundo, dilúvio, origem da noite, o justiceiro jurupari, etc. Os personagens dessas lendas eram naturalmente elementos da cultura silvícola. Eles acreditavam que dentro da carcaça de cada ser vivo existia um espírito ou alma, ao qual denominavam de Anga. Se o ser vivo, principalmente o índio fosse cordial, solidário e amigo, dentro do seu corpo habitava uma Angacatú, isto é, alma boa. Caso ocorresse o contrário, no interior do corpo existia uma Angaíba (alma ruim).  Uma vez inseridos no meio dos gentios, os religiosos católicos introduziram preceitos cristãos em suas lendas. As divindades femininas dos índios eram: a Iara (senhora das águas) e Jacy (a lua). O índio usava o vocábulo ibaca para identificar o céu, a abóbada celeste, onde residia Tupã. Por influência dos sacerdotes católicos adotaram os neologismos Jandé Jará e Iandeyara para se referir a Deus. Os dois vocábulos significam Nosso Senhor (Jesus Cristo). Aangara ou Anhangá era o tentador, o diabo, o demônio. Quando queriam falar Nossa Senhora ou nossa mãe, usavam o vocábulo Nhandé Cy. Depois que a alma deixava o corpo ela ia habitar o Anguendaba, lugar onde deve estar a alma. A alma que necessitasse passar por espiações de falhas e ficava vagando no plano terrestre era denominada Anguera, alma que está fora do corpo, assombração. A alma cheia de pecados graves ou mortais ia direto para o Anhanguara, buraco do diabo, o inferno. O relato da morte de Jesus Cristo e da vida atribulada da Virgem Maria fascinava os índios. Muitas lendas surgiram sobre as aparições da Mãe de Jesus, notadamente na Europa. Porém, a que publico nesse espaço é uma das mais interessantes que conheço e foi recolhida pelo médico e etnólogo Ary Tupinambá Pena Pinheiro, notável homem de letras que viveu no Território Federal de Rondônia.
             “A Virgem de Nazaré, após a morte de seu amado filho, morto por incompreensão dos homens, subiu viva para a Mansão Celestial, para ficar ao lado dos seus entes queridos. Passaram-se anos e a Santa, sentindo saudades da terra, quis vir até este vale de lágrimas, mesmo porque teve conhecimento de que os ensinamentos do Divino Mestre não eram obedecidos. O ódio, a inveja, o rancor, o egoísmo e a hipocrisia continuavam com a mesmo intensidade das épocas passadas. Entretanto, não quis descer em seu país natural, porque as chagas de seu coração ainda sangravam devido àquela tarde de amargura e de terror, quando foi martirizado, torturado e crucificado o filho de Deus.Escolheu a região banhada pelo rio Tocantins, lugar em que os homens não haviam profanado a fauna e a flora, onde as plantas e os animais falavam.Certo dia, quando o sol brilhava com muita intensidade e o céu parecia mais azul, a Santa desceu incógnita em uma belíssima praias localizada entre os rios Jamundá e o Tapajós. Ficou extasiada quanto ao volume das águas, o esplendor da floresta, a alvura das areias das praias, as cachoeiras imponentes e continuou na sua peregrinação rendendo graças a Deus pela oportunidade que lhe dera de ver uma região tão bela e majestosa. À tarde, antes de regressar à Mansão Celestial, fez uma prece ao Senhor do Universo e prometeu que dentro de duas luas viria de novo continuar as suas andanças. Nossa Senhora pensava que estava incógnita, mas um peixinho amazônico, denominado Aramaçá, que devido às suas inúmeras indiscrições, ficou com deformação na cabeça e estrábico, acompanhava todos os passos da Mãe de Jesus.Logo que a Santa subiu aos céus, o linguarudo participou a todos os animais, às plantas e aos insetos tudo quanto tinha visto e ouvido. Foi um alvoroço. Imediatamente foram constituídas comissões de quadrúpedes, aves, peixes, répteis, insetos, plantas, para a recepção de Nossa Senhora, daí a duas luas...

            Foi construído na praia a que a Santa deveria chegar um grande altar, aromatizado com as essências mais perfumadas, tais como: sândalo, cumaru, e o pau rosa. A bicharada, sob a regência do maestro Jabuti, “doublé” e filósofo, ensaiara um hino sacro para saudar a Virgem Maria. Tudo foi preparado com arinho e amor. No dia marcado para a visita da Santa postaram-se nas nuvens o urubu-rei e o gavião real, cujas dispersões de vôos são incomparáveis, para dar notícias da aproximação de Nossa Senhora. Era uma bela manhã de sol. O Céu, sem nuvens, brilhava intensamente. A natureza compartilhava com a bicharada, com sua beleza, para receber a Mãe do Divino Mestre. E, às nove horas da manhã, ouviu-se um grasnar do gavião-real e o crocitar rouquenho de urubu-rei, anunciando a descida da Mãe de Deus. A Santa chegou suavemente e pisou nas areias branquíssimas da praia. Imediatamente partiu da mata uma belíssima e significativa procissão de quadrúpedes, répteis e ofídios tendo à frente, portando um vistoso estandarte, o tamanduá-bandeira. A confraternização dos animais era impressionante. Via-se a onça pintada de braços com a sua fidagal inimiga, a anta; a suçuarana e o veado vinham abraçados; a jararaca, toda risonha estava enrolada no pescoço do queixada; o jacaré, lado a lado com a paca. Bandos de macacos saltando nos cipós balançavam-se nos galhos. Viam-se os macacos: barrigudo, o guariba, o da noite, o do cheiro, o cuxiú, o coatá, comandados pelo prego, que pulava de alegria, chegando até a perturbar o ambiente. Bela confraternização universal que deveria ser imitada pelo homem. Revoadas de bem-te-vis, arapongas, andorinhas, canários-da-terra, pipiras, anus, coleiros, tangarás, tico-ticos, ferreirinhos, urutaus, anambés e tanguruparás coloriam o ambiente como também as borboletas azuis, amarelas, brancas, pardas, furta-cores e listradas. Outra revoada chegava cada ave procurando ansiosamente uma nesga de chão ou galho desocupado. Eram sanhaçus, arapapás, gaivotas, jaburus, guarás, garças, cojubins, pica-paus, maçaricos, mergulhões, surucuás e piaçocas. Das águas mansas do rio saltaram o boto, o peixe-boi e o pirarucu, seguidos por toda a fauna fluvial. Vinham cantando o hino sacro ensinado pelo maestro Jabuti, que compenetrado empunhava a batuta.

            Santa Maria, deslumbrada, sentou-se ao trono e a manifestação dos animais foi iniciada. O jacaré-assu, relações públicas, deu a palavra ao intelectual dos sáurios amazônicos, o jacaré-de-lunetas, que proferiu uma belíssima oração de louvor à hóspede, causando lágrimas a todos os presentes. O jacaré-assu abrindo a bocarra, deixou correr pelos olhos grossas bagas de lágrimas, lágrimas de crocodilo. O peixe-boi depositou aos pés da Virgem Santíssima uma esplendida corbelha de flores de mururé, cuja flor lilás condizia o hábito da Santa; o boto, esquecendo por instantes as suas conquistas amorosas, depositou aos pés da Mãe de Jesus uma magnífica vitória-régia, trazida do lago “Espelho de Lua”, em Faro, o lago mais bonito da Amazônia; o pirarucu, representante dos peixes, pediu a palavra; porém, não pôde continuar com a sua oração em virtude da sua língua óssea e de ser gago; miríades de andorinhas grifavam ao redor da Divina Santa; os beija-flores trouxeram nos bicos minúsculos e cheirosas flores: violetas, jasmim, mirtos, e pulverizaram a coroa de Mãe de Jesus. Durante a manifestação o cauim, a tiquira, a manicuera e a caussuma corriam em profusão entre a bicharada. E o macaco-prego, na sua euforia e saliência, dava saltos imponentes igual a um atleta de circo, perturbando cada vez mais a reunião. O quati-mundéu, delegado de polícia, que não brincava em serviço, imediatamente o prendeu na sapopema de uma samaumeira. Entardecia. Nesse ínterim, ouviu-se uma linda música saída das capoeiras. Era uma banda regida com maestria pelo mutum, que tocava o seu bombardino; as aracuãs tocavam os pistões; os papagaios, os periquitos, os clarinetes e as requintas. Que música eloqüente e inebriante dedicada à Mãe mais sofrida do mundo.A festa estava no auge! A Virgem carinhosamente olhava com ternura e amor toda aquela bichara alegre, ruidosa, feliz e mais uma vez, fez uma prece ao Senhor do Mundo, por ter povoado a Amazônia com toda aquela maravilha. A algazarra era imensa, a euforia contagiante, a confraternização emocionante. Nessa ocasião, apareceram os poetas da mata, para prestarem também a sua homenagem. Cantaram as patativas com suas vozes de soprano; depois o mavioso rouxinol, com voz de tenor; em seguida o sabiá-da-mata, com sua voz de barítono, cantou, interpretando a tristeza do entardecer das matas amazônicas. A algazarra continuava hilariante. A Santa pouco podia escutar. 
 
O Uirapuru ( guira=ave e puru=revezar).Assim chamado devido a variedade de cantos
E foi nesse momento que se ouviu o trinar docente, e, como por encantamento, toda a algazarra cessou. Todos escutavam enlevados o Orfeu ornitológico amazônico. Era um passarinho feio, pardusco, o Uirapuru, que parecia ter na sua privilegiada garganta de cristal todas as rimas e todas as estrofes comoventes e arrebatadoras existentes no Universo. O Uirapuru passava do alegre ao grave, do pitoresco ao dramático, da canção à sinfonia. A bicharada imóvel e Nossa Senhora risonha, prestavam viva atenção à música daquela garganta de ouro, que soltava acordes tão inebriantes, tão sedosos, tão sentidos. Ouviu-se um sussurro. Era Nossa Senhora, emocionada até as lágrimas, que se levantou do seu trono e conferiu ao passarinho cantador o condão de pássaro da sorte. E é devido ao presente da Mãe de Jesus que a tradição conta que o individuo que possuir um bico, uma pena ou mesmo uma patinha do Uirapuru, a sorte lhe será perene.
            A Virgem Santíssima, apesar de estar imensamente comovida e apreciando toda aquela admirável manifestação, tinha de regressar aos céus. Fez uma prece por todos, abençoou toda a bicharada e prometeu voltar brevemente”. É provável que algum jesuíta tenha concebido essa narrativa, que foi sendo passada de geração à geração. Há quem afirme ter sido organizada pelos animais da Amazônia a primeira grande homenagem a Virgem de Nazaré, embrião do círio organizado pelos homens, que começou na cidade de Vigia e atualmente também ocorre em outras cidades amazônicas, inclusive em Macapá.

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