quarta-feira, 14 de agosto de 2013

ESPINGARDEIRO ESPANHOL


               ESPINGARDEIRO ESPANHOL
               Por Nilson Montoril

 
A presente fotografia mostra como era o aspecto da área onde foi construída a Fortaleza de São José, em Macapá.O flagrante é da década de 1950, mostrando o curso do igarapé do Igapó à esquerda da fortificação e o remanso do Elesbão à direita.Neste período a Fortaleza já havia passado por completa restauração e resgatada do abandono.

                        No dia 6 de agosto de 1783, o Governador da Praça de Macapá, sargento-mor Manuel Lobo Gama D’Almada escrevia ao Governador do Estado do Pará, José de Nápoles Tello de Menezes, cientificando-o a respeito da prisão de um cidadão de nacionalidade espanhola  apresentando-lhe o Sargento Auxiliar Salvador de Amaral, que conduzia preso um mercenário espanhol preso na entrada da Vila de Macapá no final do mês de julho. O forasteiro disse ter vindo da região compreendida entre a margem esquerda do Rio Araguary e a margem direita do Rio Oiapoque, reclamada pela França. Estava bastante exausto e sem posse de arma. A prisão do espanhol foi realizada pelos soldados que faziam o patrulhamento da Vila de Macapá sob o comando do sargento - auxiliar Salvador de Amaral. Conduzido à presença do Comandante Lobo D’Almada, no interior da Fortaleza de São José, o preso foi submetido a imediato interrogatório. Em dado momento, o espanhol retirou de uma bolsa de couro que trazia pendente do pescoço, um bilhete escrito em português e remetido por Ângelo Custódio, um soldado lusitano evadido da Fortaleza de Macapá, que seguira por campinas e matas até alcançar a localidade de Manai, na região do contestado. Ali estava instalado um grupamento de 20 de soldados franceses, que fora designado para erguer um forte na ilha Turury ou na boca do Lago Amacari. O escrito de Ângelo Custódio dava conta de que o espanhol desejava contar com o apoio dos portugueses para retornar a sua terra natal. Isso foi dito ao evadido luso pelo espanhol antes que este desertasse do contingente frances porque já estava cansado de atuar em paragens de clima adverso. Ângelo Custódio o orientou a descer no sentido de Macapá, dizendo-lhe que, através de Belém poderia iniciar a viagem de retorno a Espanha, via Lisboa. Lobo D’Almada concedeu abrigo ao aventureiro, mas o manteve isolado, sem ver detalhes da vila e da Fortaleza de São José. Temia-se que ele fosse um espião a serviço dos franceses de Caiena. Indagado pelo comandante se possuía algum oficio, o espanhol disse que era espingardeiro. Para conferir se o sujeito era mesmo bom em seu oficio, Lobo D’Almada deu-lhe a tarefa de consertar as armas da guarnição de Macapá que se encontravam com defeitos.
Esse tipo de espingarda era carregada pelo cano, que ainda não tinha raias. Seu usuário  dificilmente acertava o alvo com precisão caso ele estivesse há mais de 200 metros. No corpo a corpo ela deveria estar com a baioneta calada.

 Em pouco tempo o espanhol provou que era mestre na arte de reparar espingardas, fato que lhe valeu uma viagem até Belém para avistar-se com as autoridades sediadas na capital do Pará. O sargento Salvador de Amaral recebeu a incumbência de conduzir o espingardeiro para Belém e apresentá-lo ao governador José de Nápoles. Por ter colaborado com a guarnição da Fortaleza de Macapá, o espingardeiro espanhol foi embarcado para Lisboa e daí seguiu para Madrid. Em 1783, logo após sua inauguração, a Fortaleza de Macapá ainda não tinha sua força completa constituída por soldados da infantaria e cavalaria. Havia apenas 165 homens da tropa paga em Macapá. Devido ao porte da fortificação, defendia-se a necessidade de haver somente na tropa de artilharia 680 homens e 3.900 soldados no total, em caso de guerra. Cada canhão exigia a ação de seis soldados. Porém, o próprio projeto de Henrique Gallucio indicava que a Fortaleza tinha sido erguida para ser manejada por apenas 200 homens, contingente correspondente a duas companhias. Certamente o comandante Lobo D’Almada procurou impedir que o espingardeiro ou qualquer outro aventureiro que chegasse a Macapá comprovasse que o contingente de homens aquartelados na Fortaleza era insuficiente.
Vemos na ilustração o fecho de pederneira de uma espingarda, peça que habitualmente dava problema e necessitava de reparos periódicos   Apenas um bom armeiro e eficiente espingardeiro realizava o conserto com aprumo. O oficio não era muito praticado no meio dos homens de armas. Lobo D'Almada foi sábio em alojar o espingardeiro espanhol e atribuir-lhe o trabalho de recuperar os fechos  defeituosos. A mesma atividade o espanhol realizou em Belém antes de embarcar para a Europa.
 A disciplina era dura, razão pela qual inúmeros soldados mandados servir na fronteira acabaram desertando e passando para a área do contestado ou retornado aos locais onde moravam antes da designação. Manuel da Gama Lobo D’Almada nasceu em Portugal no ano de 1745 e ingressou na Armada Real Portuguesa aos 17 anos de idade, em 1762. Com cerca de 20 anos, em 1765, foi desterrado para o Castelo de Mazagão, no Marrocos, sem perder a condição de militar.Exerceu a função de ajudante-de-ordem do comandante e permaneceu naquela praça até o dia 10 de março de 1769, ocasião em que os portugueses abandonaram a estratégia posição militar e retornaram a Lisboa. No dia 15 de setembro de 1769, Lobo D’Almada figurou entre os retirantes da Fortaleza de Mazagão que foram mandados para a Amazônia. Ao aceitar sua designação para vir trabalhar no Grão Pará, Lobo D’Almada recebeu o perdão real de desterro, foi elevado ao posto de sargento-mor e recebeu a incumbência de governar a Vila de São José de Macapá. Neste empreendimento trabalhou em duas oportunidades: 1770 a 1771 e 1773 a 1784. No período de 1771 a 1773, organizou a nascente Vila de Nova Mazagão, a atual Mazagão Velho. Em 1884 foi designado para governar a Capitania de São José do Rio Negro, da qual se originou o Estado do Amazonas, defendendo a zona encachoeirada do Rio Negro, sediado no Forte de São Gabriel. Foi muito eficaz ao lidar com os índios que povoavam as regiões dos rios Ixié, Uaupés e Branco. Apaziguou os temidos índios Mundurucus que, desde 1770 mantinham conflitos com os portugueses. As hostilidades duraram até 1794. Lobo D’Almada implantou as primeiras fazendas de gado na região do Rio Branco (Roraima), deu eficaz apoio aos aldeamentos, implantou uma padaria de pão de arroz moído, instalou fabrica de pano de algodão em rolos,com 18 teares,montou  cordoaria, olaria, engenho de moer cana, estaleiro naval, depósito de pólvora e fabrica de sera e velas. Morreu em Barcellos, dia 27 de outubro de 1794, aos 54 anos de idade, no posto de coronel. Em todo o Estado do Amapá só há uma homenagem a esse insigne militar e geógrafo português que é considerado o maior gestor público colonial a passar pela Amazônia. Na cidade de Calçoene existe um estabelecimento de ensino com seu nome.

A ilustração mostra um armeiro preparando o cano de uma espingarda com fecho de pederneira.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

CHAMAVA-SE PEÇA O NEGRO FUJÃO




               CHAMAVA-SE PEÇA O NEGRO FUJÃO

               Por Nilson Montoril
Esta fotografia da Fortaleza São José, na cidade de Macapá, data de 1978, ano em que o governador do Território Federal do Amapá, Capitão de Mar e Guerra Arthur Azevedo Henning mandou aterrar o Igarapé Igapó, também denominado Bacaba, melhorando sensivelmente o aspecto urbanístico da área comercial. No retângulo menor, entre a Passagem Cabralzinho e a Rua Independência foi edificada a Agência do Banco do Brasil. O visual em torno da Fortaleza mudou muito,mas ainda precisa ser melhorado. Na época em que se deu o fato sobre o qual comento, a Fortaleza era cercada por áreas alagadas e sujeitas às alagações provocadas pelas águas do Canal Norte do Rio Amazonas.


                        Data de 21 de julho de 1765, a carta que o Comandante da Praça de Macapá Nuno da Cunha de Atayde Varona remeteu ao governador do Estado do Grão Pará, Fernando da Costa de Atayde Teive, comunicando às dificuldades que vinha encontrando para tocar as obras da Fortaleza de São José, em Macapá, devido à fuga de negros que se embrenhavam nas campinas e matas em demanda do quilombo existente à margem esquerda do Rio Araguary. Nuno Varona informava ao governador que iria aproveitar os feriados religiosos dos dias 25(em louvor a São Tiago) e 26(devotado a Sant’Ana e São Joaquim, genitores de Maria Santíssima e avós de Jesus Cristo) para expedir várias partidas de índios, pretos ladinos e soldados no sentido de capturar os escravos fugidos. Os negros evadidos, quase todos denominados “boçais”, sempre obrigavam que outros cativos os acompanhassem. Isso era feito para evitar que os soldados ficassem sabendo o rumo que os fujões tomavam. Sempre que ocorriam fugas, diversos negros retornavam voluntariamente à Fortaleza dizendo que suas ausências aconteceram por imposição dos lideres dos revoltados. A jornada empreendida pelos fujões era penosa e longa. Eles enveredavam pelas campinas próxima a Macapá e depois tomavam o rumo Norte, sempre seguindo o curso do Rio Matapy que nasce no Rio Araguary. Nem sempre podiam contar com a ajuda dos negros que trabalhavam em fazendas de criação de gado e utilizados nas plantações. Os fujões mais fracos acabavam morrendo exaustos e de fome, perdidos em ambiente desfavorável. O negro ladino era mais obediente do que o “boçal”, que por sua vez era orgulhoso, não se resignava com a condição de escravo e vivia tentando escapar do cativeiro. O negro fugido era rotulado como “peça” e, quando capturado, recebia marca de um F com ferro em brasa na omoplata e o número correspondente a seu registro no Senado da Câmara, órgão que o controlava.

Esta prancha pintada por Johann Moritz  Rugendas retrata como o negro fugido era tratado pelo Capitão-do-Mato. Em Macapá, não se tem registro da existência dessa categoria de funcionário público que servia ao Senado da Câmara. Os negros escravos fugidos das obras da Fortaleza de Macapá eram cassados por soldados e negros ladinos da própria fortificação
 O escravo era uma mercadoria cara, razão pela qual era castigado, mas dificilmente morto por seu proprietário. Isso só ocorria quando o cativo se tornava violento e ameaçava a vida dos senhores. Quem pensa que os negros fujões viviam em quilombos instalados nas matas do Curiaú está redondamente enganado. Às vezes eles passavam por lá, quase sempre à noite, e até se aproximavam do local onde os escravos do Alferes Miranda dormiam. Antes de adotarem tal atitude batiam em troncos de árvores ocas dando sinal. Nem sempre eram atendidos, mas quando isso se dava, os evadidos empreendiam imediata retirada depois de alimentados. Se o feitor descobrisse, o escravo que tivesse ajudado os fujões era penosamente castigado. De um modo geral, o escravo fugido não encontrava meios de sobrevivência, por isso vagavam pelas matas ou áreas rurais de difícil acesso. Era identificado como “calhambola” e ficava entocado durante o dia. Á noite, valendo-se da escuridão, invadiam propriedades para roubar alimentos, roupas e outros objetos. A aparência do fujão, cabeludo e maltrapilho, assustava as pessoas e colaborou para que surgissem as fantásticas lendas do lobisomem e dos mortos-vivos. Os antigos moradores do Curiaú contavam que, na margem do Rio Amazonas, em local relativamente distante e de difícil acesso, demorava uma negra que tinha na omoplata direita o número 19 e era “velhaca” e “sagica”. Ela mantinha em um mocambo que servia para descanso dos fujões, algumas apaziguadas tidas como “folgazonas”, isto é, mulheres que se prostituiam. Até soldados que serviam da Vigia do Igarapé Curiaú iam manter relações sexuais com elas e certamente as acobertavam. O objetivo dos negros fugidos da Fortaleza de Macapá era alcançar a área compreendida entre os rios Araguary e Oiapoque, considerada neutra por Portugal e França. O quilombo do Araguary ficava perto da cachoeira do Paredão. 
Negro imobilizado e sendo espancado pelo feitor. Esse tipo de castigo ocorria em todo o Brasil .
Ali, os fujões plantavam suas roças, criavam pequenos animais, pescavam e caçavam por algum tempo. Posteriormente buscavam manter contatos com os franceses, com o quais trabalhavam na exploração de ouro sem serem tratados como escravos. Por diversas vezes, os integrantes dos grupos de resgate de escravos arribados da Fortaleza de Macapá encontraram vestígio da passagem dos fujões pelo quilombo do Araguary, mas eles já estavam longe e em terras onde ainda não prevalecia a soberania portuguesa. No caso de Macapá não se tem informações da existência do famoso capitão-do-mato, negro liberto que ocupava a última categoria do funcionalismo público. Além de cassar negros fujões e criminosos , o capitão do mato também resolvia as questões de delitos no meio rural.

Interessante anúncio publicado no Rio de Janeiro dando conta à população da fuga de um escravo. Isso só era possível nas grandes cidades onde havia gráficas. Os anúncios era fixados em lugares públicos, barbearias,bordéis e tabernas.