terça-feira, 29 de novembro de 2011

REMANSO E ELESBÃO


                                                    
        Por Nilson  Montoril
A presente fotografia foi tirada em 1954, no transcurso de décimo ano da instalação do Território Federal do Amapá. O Remanso e o Elesbão já despontavam como pontos de preferência dos interioranos paraense que se mudaram para Macapá. Muitos moradores de outros bairros faziam algumas das suas compras na área evidenciada, onde visualizamos o Mercado Central inauguado no dia 13 de setembro de 1953.
                        Ao lado direito do platô de terra firme onde está edificada a imponente Fortaleza de São José de Macapá, havia uma reentrância denominada remanso. Tinha este nome porque naquela pequena enseada as águas do Rio Amazonas não corriam com tanta força. Existem dois conceitos bem definidos sobre remanso: a) contracorrente junto à margem de um rio; b) trecho de rio que não apresenta corrente apreciável. Na faixa litorânea que hoje integra os bairros, central e Santa Inês, instalaram-se alguns dos primeiros escravos trazidos pelos imigrantes açorianos que aqui chegaram a partir de 1751. Antes da vinda dos açorianos, por volta de 1738, um contingente de soldados chefiados por um capitão já ocupava espaço no platô, erguendo um forte de faxina. No final de ano de 1751, 86 casais de açorianos iniciaram a construção da igreja e dos tijupares que iriam abrigá-los. As instalações destes prédios eram bem simples e dominaram a área de abrangência da grande fortaleza. Enquanto os açorianos se devotavam a São José e faziam suas festas em louvor ao Espírito Santo, os negros mantinham suas tradições religiosas acobertadas pela veneração a Santo Elesbão. Este santo da Igreja católica teria sido descendente de Salomão e da Rainha de Sabá. Foi o 47º imperador da região da Etiópia, pais que dominava vasta região a oeste do Mar Vermelho. Santo Elesbão viveu no século VI dC e foi contemporâneo do Imperador romano Justiniano. Combateu e venceu os hameritas, anulando a rebelião que eles tinham desencadeado. Abdicou o trono da Etiópia a favor do filho e rumou para Jerusalém. Posteriormente se retirou para o deserto e aí viveu como monge anacoreta até falecer no dia 27 de outubro de 555. Por ser um santo negro, ganhou a devoção dos escravos africanos difundida principalmente pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Santo Elesbão e Santa Efigênia, rainha da Núbia, filha do rei Egyppo que foi batizada pelo apóstolo Mateus. Curioso é que os próprios imigrantes portugueses e açorianos eram chamados de Elesbão, certamente devido ao fato de não serem considerados de sangue puro. Consta que os imigrantes de pele clara ou parda, que não eram escravos, deveriam ser identificados com o nome da localidade de onde provinham. Os embarcados em Lisboa teriam seus nomes incluídos na relação titulada como Lisboa. Entretanto, o escrivão da alfândega equivocou-se e escreveu Elesbão em vez de Lisboa. Com o passar do tempo muitas pessoas incorporaram a palavra Elesbão ao nome de batismo.
Em 1957, o aspecto da cidade de Macapá era o que vemos na fotografia. Ao lado esquerdo da Fortaleza passava o Igarapé do Igapó. À direita , ao abrigo da correnteza estava o Remanso e em seguida o Elesbão.O Mercado Central demorava no centro da Praça Coronel Manuel Theodoro Mendes.
                        Sobre a praia do remanso, no terreno do entorno oeste da fortaleza e na área do Elesbão,os moradores de Macapá, que apreciavam residir na margem do rio, foram construindo suas habitações. No trecho identificado como Elesbão, atualmente cortado pala Avenida Hélio de Souza Pennafort, que começa na Avenida Henrique Antônio Galucio e termina da avenida 1º de Maio, vários pioneiros da edificação do povoado de Macapá formaram um aglomerado urbano. Este amontoado de casinhas e gente perdurou até meados da década de 1980, ocasião em que o Governador do Território Federal do Amapá, Annibal Barcellos, o extinguiu e transferiu os moradores para o bairro Nova Esperança. O aterro da área do remanso, do Elesbão e do igarapé do Igapó começou a ser feito em 1978, durante a gestão do Governador Arthur Azevedo Henning. A contar de 1979, os trabalhos foram intensificados pelo Comandante Annibal Barcellos, se estendendo pela orla de Macapá até as proximidades do igarapé Jandiá, dando origem à Praça Abdalla Houat, Praça Jacy Barata Jucá e expansão do Perpétuo Socorro. Para iniciar o aterro dos trechos citados o DNOS procedeu à drenagem da praia onde seriam construídas as rampas acostáveis do bairro Santa Inês, do Igarapé das Mulheres e próximo ao canal do rio Amazonas. Somente na conclusão do aterro utilizou-se laterrita. O Elesbão era uma referência para quem queria comprar peixe, carne de caça, frutas e açaí que os caboclos das ilhas fronteiriças a Macapá traziam para comerciar. Ali morou uma senhora sobejamente conhecida em Macapá como Maria Mucura. Com todo respeito à sua memória, o rosto da ditosa senhora era tal e qual a cara do marsupial devorador de aves. O pequeno declive existente perto de sua casa ficou famoso como baixa da Maria Mucura. É claro que ela não gostava do apelido e xingava os desrespeitosos até a milésima geração.Moradores do bairro do Trem de Lapidação e adjacências que gostavam de degustar uma cachacinha da marca Alvorada não deixavam de passar no boteco do seu Neco Brito e deliciar, de uma talagada só, o famoso produto advindo de Abaetetuba. Na volta para casa voltavam a encostar-se à birosca que não tinha nome para engolir a saideira. No entorno da Fortaleza, junto ao remanso, foi instalado um matadouro municipal. Sobre a praia funcionou um abatedouro de porcos pertencente ao senhor Pedro Pinheiro Borges. Também existiu um dançará na área, cujo nome parece ter sido “Bela Vista”. Quando a “porrada comia no centro”, dava gosto ver os brigões caírem na lama ou na água. Sujos e molhados iam depurar a maldita cana e sossegar o facho na Delegacia de Polícia. Ambiente mais calmo era o “Bananeira”, aprazível recanto onde uma família do local promovia festas e vendia refeições. Só funcionava nos fins de semana. Quem caísse na besteira de beber, comer e não pagar era sumariamente denunciado na Polícia e esconjurado pelo resto da vida e mais três meses.

O Remanso desapareceu entre os anos de 1979 e 1980, quando foi aterrado.A fotografia acima postada é de 1978, ocasião em que o Igarapé do Igapó tinha desaparecido da paisagem. Observe o traçado do arremedo de via pública que hoje está asfaltado e tem o nome de Avenida Rio Maracá. O Boteco do seu Neco funcionava na esquina desta avenida com a Rua São José, em frente a Casa Theco. Próximo ao Mercado Central já existiam os anexos, 3 de cada lado




sexta-feira, 4 de novembro de 2011

CUIDADO COM O NAVIO DOS CABELUDOS

                         

          Por  Nilson Montoril
Morando na beiro do rio, o caboclo não é tão indolente como algumas pessoas pensam. Nem sempre o rio e a floresta lhe favorecem na obtenção dos meios necessários a sua subsistência. Distante dos grandes centros e sem a assistência à saúde necessária, enfrenta sérios problemas. Em tempos idos a situação do caboclo era mais complicada. Atualmente, a maioria tem cartões de programas públicos, telefone celular, luz elétrica, transporte motorizado e político como padrinho e protetor.

                        Durante toda a minha infância, passada em Macapá, ouvi os macapaenses de mais idade dizerem aos meninos que temiam ir ao barbeiro: “cuidado com o navio dos cabeludos”. Os que migraram para cá após a implantação do Território Federal do Amapá, que não eram interioranos do marajó e regiões adjacentes nos diziam: “o barbeiro tem família”. Eu e os outros garotos escutávamos estas coisas e indagávamos o porquê deveríamos ter cuidado com o tal navio. Um dia perguntei ao meu saudoso pai, Francisco Torquato de Araújo, qual a função da embarcação que a molecada temia e que nunca aparecia. Ele me contou que não houve propriamente um navio com o propósito de pegar os meninos que não gostavam de cortar o cabelo e sim a execução de campanhas de atendimento médico e social ás pessoas carentes que residiam na Ilha do Marajó, Macapá, Mazagão e baixo-amazonas. A campanha fazia parte do governo itinerante instituído pelo Interventor Federal no Pará, Magalhães Barata, que visitava frequentemente as vilas e cidades interioranos levando médicos, enfermeiras, odontólogos, barbeiros, funcionários públicos dos serviços de expedição de carteiras de identidade, carteira de trabalho, certidões de nascimento, casamento, óbito e muitos medicamentos. 
Magalhães Barata, quando Interventor Federal do Estado do Pará (1930-1935). Tanto quanto Getúlio Vargas soube executar o populismo. Soube tirar partido das campanhas de saúde pública, executadas prioritariamente no interior do Pará

Este tipo de campanha de saúde pública foi organizado nos moldes das campanhas militares, haja vista que o povo tinha o costume de não prestigiá-las. Assim, todos eram obrigados, pela força, a se submeterem as práticas sanitaristas. Os portadores de doenças contagiosas eram afastados dos sadios e ficavam praticamente encarcerados, caso contrário fugiam. Esta maneira de agir da população interiorana não acontecia por acaso. Até 1923, a política de saúde pública não fazia parte da agenda do governo. No ano em referência surgiu o sistema previdenciário e foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões-CAPs. Porém, apenas os beneficiários das CAPs recebiam atendimento médico. Não havia política Nacional de Saúde. Até 1930, a assistência médica individual das classes dominantes era feita pelos profissionais legais da medicina, os chamados médicos de família. O restante da população era atendida por entidades filantrópicas através de hospitais mantidos pela Igreja Católica e recorria à medicina caseira. Nas duas primeiras décadas do Século XX, as ações de saúde pública foram vinculadas ao Ministério da Justiça, cabendo aos estados controlar as endemias, epidemias, fiscalização de alimentos, portos e fronteiras. Em 1930, a Saúde Pública foi anexada ao Ministério da Educação tornando-se encargo do Departamento Nacional de Saúde Pública, com foco principal nas atividades sanitárias. Criados neste ano, os sanatórios para tratamento da tuberculose e hanseníase. Em decorrência de um acordo firmado com os Estados Unidos da América, em 1942, o governo do Brasil criou o Serviço Especial de Saúde Pública-SESP, dando apoio aos trabalhadores envolvidos na produção da borracha que não eram  assistidos pelos serviços tradicionais.A campanha realizada pelo governo de Magalhães Barata foi rotulada em anos recentes como Operação Cívico-Social, ou simplesmente ACISO. Deu excelentes resultados, mas despertou a ira dos figurões da política adversária. Eles diziam que o Interventor Federal havia abandonado Belém. O jornal Folha do Norte desenvolveu intensa campanha antibaratista e acabou contagiando grande parte da população belenense. Enquanto isso acontecia, os interioranos recebiam atendimentos diversos. Até pequenas cirurgias foram feitas em pessoas que poderiam ter morrido por falta de assistência médica. Curativos, aplicações de vacinas e antibióticos, extrações de dentes, cortes de cabelo, combate a piolhos, a bichos do pé e outros serviços foram prestados. A ordem era pegar na marra os resistentes e submetê-los a ação médico-social. Os moleques eram os campeões do medo. Tiveram que ser agarrados por policiais para que os barbeiros, dentistas e enfermeiros fizessem seus trabalhos. No meio dos fartos cabelos que eles apresentavam viviam centenas de piolhos. 
O phthiraptera, piolho em grego, se alimenta de sangue, de residuo de epiderme e de secreções sebaceas. Há mais de 3 mil espécies de piolhos no mundo. Eles possuem 3 pares de pernas, são desprovidos de asas adoram cabelos limpos.Não fazem distinção entre crianças e dultos. O piolho é citado até na Biblia e se hospeda na cabeça, nas roupas e na região pubianas e perineal dos seres humanos(chatos).Também atacam aves,gatos,cães e bois,mas estas espécies não infectam os humanos. Cada fêmea bota de 4 a 10 ovos por dia que eclodem em 4 semanas. O combate ao piolho deve ser coletivo, principalmente nas escolas.Não se deve usar pentes, bonés,chapeus,capuchos,lençóis, redes e roupas de outras pessoas.

Por isso, o corte tinha que ser feito com máquina zero, deixando apenas uma singela "pastinha". O estrago que os piolhos faziam nos homens e mulheres deixava os médicos abismados. Feridas em profusão havia na cabeça e na nuca da maioria das pessoas. Na tentativa de eliminar os piolhos, as mulheres passavam óleo de andiroba e de pracaxi nos cabelos. Outras utilizavam vinagre morno. Após os cortes de cabelo das mulheres, os barbeiros jogavam “neocid” na cabeça das mais atacadas pelos piolhos e a enrolavam com pano branco. Algumas horas depois, quando o pano era retirado, uma quantidade "disconforme" piolhos mortos era vista. Ao passar o pente fino nos cabelos outra impressionante quantidade caia na toalha, alguns ainda vivos.Com tanto piolho na cabeça, o cristão sentia muita coceira, afinal de contas, o piolho se alimenta de sangue duas ou tres vezes por dia. Esfregando as unhas sobre o couro cabeludo e pescoço, a pessoa acabava ferindo-os  e provocando o surgimento de feridas, caminho aberto para fungos e bactérias. O rebaixamento dos cabelos  permitia que os enfermeiros limpassem estas feridas e aplicassem remédios sobre elas, quase sempre sulfa ou pomada secativa São Lucas. Não foram poucos os registros de óbito de interioranos em decorrência da  chamada “febre de trincheira”. Esta denominação surgiu durante a I e a II Guerras Mundiais devido à morte de soldados atacados por piolhos dentro das trincheiras. 

Na fase do Amapá como Território Federal a Operação Aciso foi realizada inumeras vezes. A Banda de Música da Polícia Militar era um bom recurso para atrair as crianças. A fotografia postada acima foi tirada na Vila do Igarapé do Lago do Rio Anauerapucu (1980). A Banda da PM também executava o Hino Nacional, dobrados,marchas e músicas da Jovem Guarda.